“A lealdade não se compra. Se constrói no sangue, no silêncio e no olhar.”
Matteo A brisa ainda era fria quando atravessei o pátio da sede. O céu sobre a Calábria tinha aquele tom cinzento de sempre, como se refletisse o que somos por dentro, gente feita de ferro, ódio e memórias pesadas. O segurança abriu a porta do carro antes que eu dissesse qualquer coisa, mas fui interrompido pela voz que conhecia bem. — Don Matteo! — Francesco. Virei devagar, ajeitando o paletó. O garoto, embora já não fosse mais tão garoto, corria em minha direção com a mesma empolgação dos primeiros tempos, quando mal sabia segurar uma arma. — Que foi, moleque? A sede vai explodir? — perguntei com ironia, um canto da boca subindo. Ele riu, meio sem jeito. Os olhos castanhos estavam agitados. Nervosos. Era raro vê-lo assim. Francesco nunca gaguejava, nunca titubeava. Eu o treinei. Eu o moldei. Eu fiz dele um soldado. Quase um filho. — Eu... queria pedir sua bênção. Ergui uma sobrancelha. — Vai virar padre agora? — Não, Don. É que... eu quero me casar. O silêncio pesou entre nós por alguns segundos. Um pedido desses, vindo de qualquer outro, me faria rir. Mas Francesco não era qualquer um. Era leal, inteligente, sangue frio quando precisava. Mataria por mim. E já matou. — Com quem? — perguntei sério, me aproximando. — O nome dela é Arianna. Ela é sobrinha de um dos fornecedores do porto. Não sabe do que fazemos, ainda. Mas é boa. Educada. Trabalhadora. — Você sabe que mulher nenhuma entra nesse mundo sem carregar consequências. Ele assentiu. — Não quero esconder dela. Quando for a hora certa, vou contar. Mas não quero tomar essa decisão sem o seu aval. O respeito que aquele garoto tinha por mim era real. Eu via nos olhos dele. Nos gestos. Nas palavras. Numa era de traidores e idiotas, Francesco era ouro. Aproximei-me, bati duas vezes no ombro dele, firme. — Traga ela hoje à noite para jantar. Na mansão. Os olhos dele brilharam, como se eu tivesse acabado de lhe dar uma coroa. — Obrigado, Don Matteo. Vai ser uma honra. — Não me agradeça ainda. Só vou saber se ela presta quando olhar nos olhos dela. E se eu perceber que tem algo de errado… você vai ser o primeiro a saber. E o último a se arrepender. Ele assentiu mais uma vez, agora com um pouco mais de tensão. — Sim, senhor. Entrei no carro e, quando a porta fechou, apoiei os cotovelos nos joelhos e encarei a cidade lá fora pela janela. Casamento. Família. Fidelidade. Palavras que soavam bonitas no papel. Mas que, no meu mundo, podiam significar ruína. E Francesco... bom, ele precisava aprender que no nosso jogo, até o amor pode virar arma. (…) A mansão estava silenciosa, como deveria estar em noites importantes. Martina escolheu um vestido vermelho berrante, quase vulgar. Se arrumou cedo demais e passou os últimos vinte minutos reclamando da temperatura do vinho e da falta de música clássica. Francesco chegou pontualmente, com Arianna ao lado. Ela usava um vestido simples, azul escuro, os cabelos presos num coque elegante. Discreta. Tímida. Mas com postura. Observei os dois desde o hall. Ela sabia que estava sendo testada. — Boa noite, senhor Matteo. — Ela me olhou nos olhos e baixou o olhar no tempo certo. Educada, mas não atrevida. Me agradou. — Boa noite, Arianna. Sente-se. Na mesa, Isabella puxou conversa com ela de forma doce, enquanto Luca ouvia tudo calado. Giovanni ocupava o canto de sempre, observando como eu. Era bom saber que alguém além de mim tinha olhos atentos naquela casa. Martina, como era de se esperar, não calava a boca. — Nossa, Arianna... você trabalha? Porque mulher que vive nas costas de homem é o fim da picada. — disse ela, entornando a terceira taça de vinho. — Eu sou professora. Dou aulas para crianças. — Arianna respondeu, com um sorriso educado, sem confrontar. — Crianças! Que gracinha... — disse Martina com sarcasmo. — Mas então, você sabe com quem está se metendo, né? Porque o Francesco vive em reuniões... perigosas. O olhar que lancei para Martina fez o garfo dela parar no meio do caminho. — Você fala demais. — murmurei. Ela pigarreou e voltou a mastigar. — Desculpa... Francesco segurava a mão de Arianna discretamente. Eu via. E não me incomodava. Pelo contrário. Eu via verdade ali. Depois do jantar, seguimos para a sala principal. Whisky foi servido, os charutos acesos. — Francesco. — Chamei, cruzando as pernas no sofá. — Já pensei bastante. Ele se levantou de onde estava e ficou de frente para mim, firme como um soldado. — Pode se casar com ela. Tem minha bênção. Os olhos dele brilharam de orgulho. Arianna, sentada ao lado, não entendeu a profundidade daquilo, mas percebeu que era importante. — Obrigado, Don Matteo. Significa muito para mim. — Significa mais para você do que para mim. — respondi, olhando nos olhos dele. — Porque se errar, é seu sangue que limpa a bagunça. Ele assentiu com a cabeça. Aquele tipo de ameaça não era novidade. Giovanni sorriu de canto. Sabia que a cerimônia seria discreta, talvez até celebrada por um dos nossos. A bênção de um Don era mais poderosa que a de Deus. Martina, do fundo da sala, bufou e sussurrou: — Claro que aprovaria. Parece que prefere uma professora sem graça a uma mulher de verdade… Fingi não ouvir. Mas ouvi. E decorei. Quando o jantar acabou, fiquei alguns minutos sozinho no salão vazio. A fumaça do meu charuto subia lenta, espessa, como as lembranças. Eu havia permitido um casamento. Um soldado da Ndrangheta começava uma nova vida. E mesmo com todos aqueles rostos ao meu redor, faltava um. O único que nunca consegui arrancar de mim. Angeline. Onde você se esconde, meu maldito anjo?