Evelyn O carro se afastava devagar, e cada metro parecia uma despedida em câmera lenta. A fachada do orfanato foi ficando menor, até virar só um borrão pela janela embaçada. Eu forcei o olhar pra frente, tentando fingir que aquilo não me afetava — mas afetava. E muito. O peito pesava como se tivesse uma pedra ali dentro. Eu me despedi das meninas há poucos minutos, e ainda conseguia ouvir as vozes delas, as risadas forçadas pra esconder o choro, o som das malas sendo arrastadas no chão do pátio.
Abaixei a cabeça, fingindo interesse no próprio colo. Não queria que o motorista percebesse o nó que estava se formando na minha garganta. Ele olhava pra mim de tempos em tempos pelo retrovisor, e toda vez que nossos olhos se cruzavam, eu desviava rápido. Senti o gosto metálico de segurar o choro, aquela ardência no fundo da garganta. Eu queria chorar, mas não ali. Queria guardar as lágrimas pra quando estivesse sozinha, pra quando não houvesse testemunhas.
A noite anterior tinha sido uma tortura. Tentei dormir, mas a ansiedade não deixou. O travesseiro virou um campo de batalha entre pensamentos e lembranças. Agora, no banco do carro, o cansaço me vencia aos poucos. As pálpebras pesavam, mas eu me recusava a fechar os olhos. Queria estar acordada quando chegasse. Queria ver — mesmo que doesse — o lugar que seria minha nova casa.
Quando os portões se abriram, meu coração deu um salto involuntário. A mansão se impôs diante de mim como uma lembrança que eu não sabia se queria revisitar. Era grande, silenciosa, com aquela arquitetura que misturava imponência e frieza. Tudo parecia mais bonito do que eu lembrava… e ao mesmo tempo, mais distante.
A sra. Collins me esperava na entrada, o sorriso acolhedor de sempre. Eu me lembrava dela. Está mais envelhecida, mas com o momento sorriso. Ela me envolveu num abraço que quase quebrou a minha resistência. Tinha cheiro de bolo, de casa viva, de alguém que realmente se importa.
— Evelyn, querida! Como você cresceu… — ela disse, afastando-se só pra me olhar direito. — Está uam garota tão linda.
Antes que eu conseguisse responder, Dante surgiu logo atrás dela. Ele era uma presença silenciosa, mas que tomava o espaço. Alto, tenso, o olhar afiado. Não sorriu. Apenas me cumprimentou com um leve aceno, como se cada gesto dele fosse medido e controlado. Até planejado.
— Sr. Dante — murmurei, um tanto sem saber o que dizer.
Ele apenas inclinou a cabeça, num gesto de reconhecimento. A sra. Collins, animada, pegou uma das minhas malas e me conduziu pra dentro, enquanto ele nos acompanhava, calado.
O som dos nossos passos ecoava pelo hall de mármore. O ar ali dentro tinha cheiro de limpeza e tempo — uma mistura estranha de flores e móveis antigos. Eu queria dizer algo, quebrar o silêncio, mas não sabia o que cabia naquele momento. Olhei pra ele de relance, e quando percebi que ele também me observava, apenas assenti. Uma comunicação muda, desconfortável, mas parecia o suficiente.
A sra. Collins abriu a porta do quarto e sorriu, orgulhosa:
— Arrumamos tudo com carinho. Troquei as cortinas pra deixar o quarto mais claro. Estava fechado há tanto tempo… o sr. Arthur queria mantê-lo do jeitinho que você deixou.
Aquelas palavras me atingiram de forma silenciosa, como se alguém tivesse encostado o dedo numa ferida ainda aberta. Olhei ao redor. O quarto estava impecável, mas familiar. As paredes pareciam guardar ecos de uma versão antiga de mim, uma menina que eu já não era mais. Suspirei fundo, tentando digerir o peso daquela lembrança.
A sra. Collins me deu um último sorriso e se despediu, pedindo que eu descansasse. Quando a porta estava quase fechando, Dante apareceu no vão.
— Está tudo bem? Precisa de algo? Para você ou para o quarto? — a voz dele era baixa, firme, sem rodeios.
Pensei, com uma pontinha de ironia: “Então ele fala.” E é irritantemente mais bonito do que eu esperava. Do garoto quieto, reservado, virou um homem atraente. Um homem que eu não ousaria olhar de maneira inadequada, o que me fez desviar o rosto imediatamente.
— Está tudo bem. Obrigada por me receber. — tentei sorrir, mas o gesto saiu meio tímido.
Ele ficou por um instante parado, como se escolhesse as palavras com cuidado.
— Esta casa é sua também — disse, enfim.
Eu o encarei por um momento. Quis responder “não seria mais se você tivesse recusado a tutela”, mas engoli as palavras. Ele não precisava ouvir isso. Eu também não precisava parecer ingrata. Então apenas assenti.
Ele me deu um leve aceno de cabeça e se retirou, deixando o ar do quarto parecer maior, mais quieto.
Fechei a porta, encostei a testa contra ela e deixei escapar o suspiro que estava preso desde o caminho. O quarto era bonito, o dia ainda estava claro, mas nada disso abafava o desconforto. Tudo era novo e antigo ao mesmo tempo. E, no meio de tudo isso, eu — tentando entender onde exatamente me encaixava nessa história que nem escolhi viver.
Em cima da cômoda, ainda tinham as totos que minha mãe colocara. As mesmas fotos. Nada ali mudou além das cortinas e dos novos lençóis. E da ausência desconcertante da minha mãe, que eu nunca mais veria.
Fui até a janela e vi o jardim da casa. Era bem cuidado. As flores aos poucos desabrochavam com a chegaga lenta da primavera, e resistia ás chuvas contínuas de Bath. Era como ter um inverno o ano todo, sem trégua, mas esse era o tempo da Inglaterra. A terra úmida, da garoa, do ar que nunca ficava seco por muito tempo e estava sempre molhada.
O silêncio me abraçou inteiro. E, finalmente, as lágrimas vieram — suaves, inevitáveis, mas libertadoras. Eu precisava disso. Precisava me libertar, da dor que me corrói quando eu finjo que nada me afeta. Eu não fazia ideia do que aquela casa iria me oferecer além da ausência dolorosa da minha mãe e do sr. Arthur. E com a presença enigmática e silência de Dante Harrington. Tudo que eu sabia até aquele momento, é que minha vida havia mudado. Das paredes seguras do internato, para as paredes frias daquela mansão. Era uma mudança e tanto.