Capítulo 4 - Solitude

  Dante 

  Os papéis estavam sobre a mesa, perfeitamente alinhados, como se isso amenizasse o peso que tinham. Henry estava à minha frente, calado, com as mãos cruzadas sobre a pasta de couro. O tique-taque do relógio na parede parecia zombar da minha indecisão. Eu não conseguia tirar os olhos daquelas linhas impressas. Tutela. Responsabilidade. Promessa. Palavras que soavam bonitas nos discursos, mas que, na prática, vinham carregadas de correntes invisíveis.

  Há minutos — ou horas, eu já não sabia —, eu segurava a caneta. O metal frio queimava meus dedos. O tipo de ironia que o destino gosta: nada parece mais incandescente do que aquilo que não queremos tocar.

  Henry suspirou.

  — Dante, você não precisa se apressar.

  Levantei os olhos para ele.

  — Eu sei o que está pensando, Henry. Hoje é o último dia, para assinar ou... fugir disso. 

  — Imagino que esteja pensando muitas coisas. — Ele ajeitou os óculos. — Arthur sabia que você não aceitaria isso de imediato.

  — Ele sabia, sim. Claro que sabia. — Falei baixo, quase para mim. — É o tipo de desafio que ele adorava impor. Eu ainda não entendo o que ele pretendia com isso. 

  O advogado ficou em silêncio por um instante, como quem respeita o luto de um homem ainda em guerra com o próprio sangue.

  — Visitei Evelyn ontem — disse por fim. — Ela está apreensiva. Imagino que o senhor também.

  Apreensiva. A palavra me incomodou.

  — Apreensiva ou não — retruquei —, ela não precisará se preocupar com nada. Isso, pelo menos, eu posso garantir.

  Henry assentiu, observando-me com aquela paciência antiga que só ele tinha.

  — Dante, se você decidir não aceitar, encontraremos alguém disposto. Arthur não deixaria a menina desamparada. Certamente terá alguém qualificado. Richard disse que, se você não aceitar, ele pode tentar, se Catherine também aceitar. 

  Olhei novamente para o papel. Um pequeno “X” marcava o ponto onde eu devia assinar. Aquilo parecia tão simples, tão ridiculamente fácil. Um risco de tinta e minha vida ganharia uma nova sombra.

  Respirei fundo. A caneta pesava como ferro.

  — Pelo visto vou ter uma irmã — murmurei, sem humor.

  Então assinei. Um traço firme, outro abaixo, mais um. Cada assinatura parecia selar uma sentença.

  Recostei na cadeira e cruzei os braços.

  — Eu devia saber que ele não facilitaria nada pra mim.

  Henry fechou a pasta devagar, com cuidado quase cerimonial.

  — Seu pai pensou em tudo com muito cuidado. Se deixou Evelyn sob sua responsabilidade, é porque acreditava em você. Ele nunca confiaria isso, que era tão importante para ele, a qualquer pessoa.

  — Que seja — respondi, exausto. O som saiu mais como um suspiro do que uma fala.

                                                 ***

  A mansão estava silenciosa quando voltei. Aquele tipo de silêncio que não é paz — é ausência bruta. A ausência tem cheiro: o da madeira antiga, dos livros que ninguém abre, do tempo que não volta.

  Sra. Collins veio me receber no hall. Tinha o rosto iluminado por um sorriso que parecia uma brecha de luz num dia cinzento.

  — Dante — disse, limpando as mãos no avental. — Você voltou mais cedo que imaginei.

  — Tive alguns assuntos pra resolver. — Tirei o casaco e o pendurei. — Vou precisar que prepare um quarto de Evelyn.

  Ela arqueou as sobrancelhas, curiosa.

  — A filha de Eloise? A Evelyn?

  — Sim. — Cruzei o olhar com o dela. — Ela voltará morar aqui por um tempo. Já estava no tempo de deixar o orfanato, e logo irá para a universidade. 

  Por um segundo, os olhos dela brilharam.

  — Isso é mesmo verdade? A pequena Evelyn voltará?

  Revirei levemente os olhos.

  — Pequena não. Já não é mais uma criança.

  — Ah, mas pra mim sempre será a garotinha que ficava na cozinha — disse ela, sorrindo. — Ela vinha quase todos os dias, coitada, porque não tinha ninguém com quem brincar. 

  Fiquei quieto.

  — Eu sempre me perguntava — continuou ela, ajeitando o avental — por que você nunca brincava com ela.

  A pergunta me pegou de surpresa. Fiquei olhando para o chão de mármore, procurando uma resposta que não soasse patética.

  — Não sei ao certo. — Passei a mão pelos cabelos. — Quando Eloise e Evelyn chegaram, tudo mudou muito rápido. Eu me sentia… deixado de lado. Acho que, de algum modo, culpei as duas por isso.

  — E descontou na menina, ignorando-a — disse ela, sem rodeios.

  Assenti devagar.

  — Talvez. Eu era um garoto confuso. Não sabia lidar com ninguém.

  — Foi um pouco maldoso, Dante. — A voz dela não era dura, mas tinha firmeza. — Ela era tão solitária quanto você.

  Engoli o incômodo e deixei escapar um sorriso breve.

  — A senhora nunca teve papas na língua, não é?

  — E nunca terei — respondeu, com orgulho. — Vou preparar o quarto dela. Quero que esteja perfeito.

  — Se precisar de algo para a decoração, me avise. — Fiquei parado, observando-a se afastar pelo corredor. — Lembre-se de que ela é praticamente uma adulta agora.

  Ela se virou antes de dobrar a esquina.

  — Adultos também precisam de um pouco de aconchego, Dante.

  Fiquei sozinho de novo, no meio do hall, com o eco dos passos dela se misturando ao silêncio da casa.    Subi a escada, devagar, com as mãos nos bolsos.

  No escritório, o sol entrava pelas janelas altas, iluminando o retrato do meu pai. Ele me olhava do quadro com o mesmo semblante duro, os olhos que sempre exigiam mais.

  — Desafia-me até depois de morto, velho teimoso — murmurei.

  A herança, os negócios, a fortuna… tudo parecia pequeno diante da tarefa que ele havia deixado: cuidar de alguém. E não de qualquer alguém, mas da garota que me lembrava da parte da minha vida que eu tentei apagar.

  Evelyn. O nome soava como algo distante, mas agora carregava o peso de uma promessa que não era minha.

  Recostei na poltrona, olhando o teto ornamentado. Um vento frio atravessou o cômodo, balançando as cortinas.

  Talvez meu pai tivesse razão. Talvez esse fosse o tipo de responsabilidade que me faltava pra entender o que realmente significa ter um legado. Ou talvez fosse só mais uma das suas armadilhas sentimentais. De qualquer forma, não havia mais volta.

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