Capítulo 6 - Olhares ocultos

  Dante

  A mansão parecia maior desde que ela chegou. Talvez porque agora o silêncio já não era o mesmo — não era aquele vazio confortável que eu havia aprendido a domesticar, mas uma espécie de pausa antes de algo que eu mal sabia identificar. Evelyn estava ali, sob o mesmo teto, e mesmo que o nome dela já ecoasse entre as paredes há anos, era como se eu estivesse convivendo com uma completa desconhecida.

  Passei o dia tentando agir normalmente, mas não havia nada de normal naquela situação. Meu pai, no fim das contas, tinha me deixado mais do que uma herança: tinha me deixado uma responsabilidade viva, de olhos grandes e inquietos. Eu não sabia o que esperar daquela situação. O que esperar de Evelyn. E menos ainda, o que devia esperar de mim. 

  Quando a noite caiu, pedi à sra. Collins que preparasse um jantar que agardasse a garota, com tudo o que ela gostava. Não queria que Evelyn pensasse que eu a estava ignorando, ainda que, na prática, fosse exatamente isso que eu queria fazer. De alguma forma, eu devia ao meu pai o esforço de parecer um homem minimamente civilizado.

  Desci primeiro. A mesa estava pronta, a luz do lustre incidindo sobre a porcelana como se cada detalhe tivesse sido ensaiado. O som da chuva batendo nas janelas misturava-se ao tique-taque do relógio na parede, e o cheiro do jantar recém-servido pairava no ar.

  Quando ela apareceu, alguns minutos depois, percebi que o tempo tinha feito um tipo curioso de trabalho nela. Evelyn não era mais uma menina de seis anos — havia nela uma presença calma, mas desafiadora. E, por um instante, o pensamento que passou pela minha cabeça foi o mais impróprio possível. Afastá-lo custou mais do que eu esperava.

  — A casa é ainda maior do que eu lembrava — ela disse, observando tudo ao redor antes de se sentar.

  Eu me limitei a concordar com um aceno. Evelyn ergueu o olhar para o teto, e um pequeno sorriso surgiu no canto da boca.

  — Sempre gostei desse lustre. Ele parece coisa de outro século.

  — E é. — respondi, apoiando os cotovelos na mesa. — Meu pai nunca gostou dele, mas o tolerava. Foi minha mãe quem escolheu praticamente toda a decoração, e a única coisa que ela nunca quis mudar, era e esse lustre, que já acompanhou muitas linhagens da família Harrington. 

  Ela assentiu, distraída, como se o nome “mãe” tivesse acionado alguma memória que ela tentava esconder. Por um segundo, o olhar dela se perdeu, e eu tive quase certeza de que ela estava pensando na própria. Não perguntei nada — curiosidade nunca foi o meu forte.

  O jantar prosseguiu em silêncio. Os talheres contra os pratos eram o único som que preenchia o ambiente. Às vezes, nossos olhares se encontravam — breves, tensos, como se cada um tentasse decifrar o outro e desistisse antes de começar.

  Quando a sobremesa chegou, eu quebrei o silêncio.

  — Em breve você irá para a universidade. Ainda não sei o que quer estudar. 

  — Artes e design. Farei o preparatório. 

  — Artes? Que interessante. 

  — E você, em que se formou? 

  — Administração e Direito — respondi, com naturalidade. 

  Evelyn soltou um assobio baixo.

  — Duas áreas sérias. Então você deve ser um homem inteligente. E, imagino, nada dado ao sentimentalismo.

  — Está me analisando? — Lancei-lhe um olhar rápido, divertido. — Psicanálise, por acaso?

  — Psicanálise é um jogo de espelhos — respondeu, com uma certa elegância displicente. — Quem analisa, às vezes se entrega mais do que o analisado.

  Contive o riso. Ela era afiada, sagaz, e parecia ter o dom de transformar qualquer conversa em duelo.

  — Isso foi uma provocação?

  — Foi uma constatação — disse ela, encarando a sobremesa. 

  Ficamos alguns minutos em silêncio. Talvez tentando encontrar algum assunto em comum. Então, eu aproveitei para prepará-la para que pudesse esperar da mansão.   

  Evelyn encarou alguns retratatos que moravam em algumas paredes há um bom tempo. 

   — São seus antepassados? — ela perguntou, a voz quebrando o silêncio como uma pedra atirada num lago imóvel.

  — São os fantasmas da família Harrington. — respondi — Eles vigiam tudo, mas não se preocupe. Já estão acostumados a me desaprovar.

  Evelyn reprimiu um sorriso. 

  — Então é uma casa cheia de julgamentos. — comentou, fingindo leveza.

  — Como toda casa antiga. — Olhei por cima do ombro, o olhar fixo nela por um segundo a mais do que o necessário. — Mas não se preocupe, seus pecados ainda não foram catalogados.

  Depois da sobremesa, ofereci um tour pela mansão. Evelyn aceitou de imediato. 

  — Eu já não me lembro de muita coisa. — comentou ela. — Tudo o que mais lembro é de você parado no corredor. 

  Evelyn sustentou o olhar. Havia algo perigoso em estar assim, mas era impossível resistir à provocação.

  A cada sala que atravessamos, expliquei as regras com o mesmo tom impassível com que leria um contrato. Não sair sozinha da propriedade sem avisar. Não usar certas alas da casa — especialmente a biblioteca do andar superior, que eu chamava de “território pessoal”. Horários para refeições, visitas limitadas, e o mais importante: discrição absoluta sobre a minha vida.

  — Parece mais um regulamento de internato do que uma casa. — murmurou Evelyn, quase para si mesma.

  — É uma casa com ordem. — corrigi. — A diferença entre caos e disciplina é o que mantém as pessoas seguras.

  Ela arqueou uma sobrancelha.

  — Seguras… ou sob controle?

  A minha resposta demorou o suficiente para o silêncio se tornar desconfortável. 

  — Às vezes, é a mesma coisa. 

  O meu olhar pousou sobre ela, e Evelyn percebeu que havia algo não dito ali. Um peso que vinha de anos de obrigações, de tradições que eu carregava por costume, não por escolha. Eu era o tipo de homem que parecia ter nascido dentro de uma armadura. Polido por fora, vazio por dentro.

  Quando chegamos à varanda dos fundos, o vento frio atravessou o jardim e trouxe o perfume das flores noturnas. Evelyn se apoiou no corrimão, observando o horizonte distante.

  — Deve ser solitário morar aqui. — disse, sem olhar para mim. 

  — A solidão é o preço da liberdade.

  Ela virou-se, confusa.

  — Mas você não parece livre.

  Por um instante, eu me senti vulnerável, como se aquela observação tivesse atravessado a minha couraça. Depois, sorri, breve e distante.

  — Você é perspicaz demais para uma garota que acabou de chegar.

  Evelyn riu, um riso leve, mas autêntico.

  — E você é controlado demais para um homem que finge não se importar.

  Desviei o olhar, virando-me para o jardim. Ela não fazia ideia, mas com aquela pergunta trivial, tinha tocado em algo que guardo a sete chaves. Vi a sombra de compreensão nos olhos dela, e soube que meu disfarce habitual tinha falhado por um instante. Não sou apenas o guardião; sou um homem que aprendeu a usar a elegância como um curativo para cicatrizes profundas, talvez grandes demais para cicatrizar. É a única forma de sobreviver aqui. E, estranhamente, é por isso que sinto que ela precisa me desafiar.

  Enquanto voltávamos, as paredes desta mansão me pareceram mais do que nunca um grito abafado. Lembro-me da solidão que sempre me acompanhou, uma cela dourada que herdei e que chamo de lar. Eu a decorei, claro. Tornei-a impecável, funcional. Mas, no fundo, sei que não passa de uma prisão. Eu sou seu carcereiro e seu prisioneiro.

  Eu a observava à distância. A curiosidade incansável no mover do seu olhar, a recusa silenciosa em se curvar às regras não ditas, ainda que ela as seguisse à risca. Havia algo em Evelyn que me feria e me fascinava, uma liberdade que eu tinha enterrado junto com meus vinte e sete anos, e que agora me lembrava, de forma inquietante, de tudo que perdi.

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