O som suave dos violinos ainda ecoava nos jardins da mansão Villar, misturando-se às últimas risadas e conversas abafadas dos convidados que começavam a se dispersar. A decoração reluzia sob a luz amarelada dos lustres: pétalas brancas espalhadas pelo chão, castiçais ainda acesos e copos meio cheios sobre as mesas de vidro. Tudo parecia parte de um sonho.
Mas para Isabela, o sonho começava a se transformar em algo que ela não compreendia.
Vestida no mesmo vestido branco rendado da cerimônia — agora com a saia um pouco amarrotada pelas danças, abraços e felicitações — ela caminhava por um corredor interno da mansão, guiada por uma funcionária de olhar apático e postura rígida. O som de seus sapatos ecoava sobre o chão de mármore como se anunciasse o início de algo sombrio.
O corredor era longo, ladeado por espelhos altos que refletiam sua imagem confusa e abajures dourados que lançavam sombras elegantes, porém pesadas. Cada passo parecia mais distante da festa e mais próximo de algo que seu coração, sem saber por que, já começava a temer.
— A dona Helena pediu que a senhorita viesse até aqui — informou a empregada, com a voz seca. — Ela disse que tem algo importante para mostrar.
Isabela franziu o cenho. Não perguntou nada. Apenas continuou seguindo, engolindo em seco o desconforto que se acumulava em sua garganta.
No final do corredor, uma porta larga de madeira escura aguardava. Ao lado dela, uma mulher vestida de branco — uma enfermeira, claramente — levantou os olhos de um livro sem título, avaliando Isabela de cima a baixo. Não sorriu, não falou. Apenas se levantou, girou a maçaneta e abriu a porta com lentidão cerimonial.
O ambiente era sufocante.
Silêncio absoluto. Um quarto amplo, de decoração sóbria, cortinas pesadas filtrando a luz da noite. Um ar frio pairava ali, quase fúnebre. E no centro do cômodo, deitado sob lençóis brancos impecavelmente esticados, estava ele: Leonardo Villar.
Isabela parou imediatamente.
Sentiu o coração tropeçar no peito. Um arrepio cortante percorreu sua espinha. O homem diante dela estava imóvel, sereno, como uma escultura viva.
— Esse é o senhor Leonardo? — ela sussurrou. — Ele está… vivo?
— Vivo, sim — respondeu uma voz vinda de trás.
Isabela se virou lentamente. Helena Villar havia entrado no quarto sem anunciar sua presença, como uma sombra elegante. Estava impecável, como sempre: maquiagem leve, cabelo preso com perfeição, vestido bege sem um único vinco. Seus olhos, porém, tinham um brilho frio, calculista. Como lâminas disfarçadas em veludo.
— E agora… — disse ela, cruzando os braços. — Ele é seu marido.
Isabela piscou várias vezes, como se a frase tivesse sido dita em outro idioma.
— Eu… desculpe? O quê?
Helena aproximou-se da cama com delicadeza. Ajeitou um fio de cabelo sobre a testa do filho adormecido, como uma mãe amorosa faria. Depois, voltou-se para a jovem com um sorriso pálido nos lábios.
— Aquela festa de hoje à tarde não foi apenas um aniversário, Isabela. Foi o seu casamento. Legal, registrado, oficial. O juiz de paz esteve lá. Discreto. Como combinado.
Isabela levou a mão à boca.
— Não… isso é impossível. Eu não… eu jamais…
— Você assinou os papéis, querida. Quando assinou o “livro de presença”. Documentos reais, misturados aos formulários da festa. Sua mãe também assinou. Eu mesma cuidei de tudo. Você agora é legalmente Isabela Villar.
— Isso é… isso é uma farsa! — gritou ela, dando um passo para trás, o corpo tremendo. — Eu não consenti! Isso é ilegal!
— Você tem dezoito anos — rebateu Helena, impassível. — Sua assinatura basta. A da sua mãe é um bônus. Está tudo dentro da lei.
— Mas... eu nem sabia! Isso não é casamento, é sequestro! É abuso!
Helena então se aproximou, sem pressa, sem mudar o tom de voz. Sua postura era a de alguém que sabia exatamente o que estava fazendo. Que tinha todas as cartas na mão.
— Isabela… — disse, como se explicasse algo a uma criança lenta. — Você foi escolhida. Minha família tem nome, tem legado. Mas meu filho está doente. E não posso permitir que ele parta sem deixar um herdeiro. Você agora é parte do futuro dos Villar. E o seu dever é gerar essa continuidade.
Isabela empalideceu. Suas pernas fraquejaram.
— Você… quer que eu engravide dele? Mesmo ele… desse jeito?
Helena sorriu pela primeira vez. Mas não era um sorriso de alegria. Era o tipo de sorriso que gela a alma.
— Não é uma questão de querer. É uma necessidade. Meu filho não pode mais escolher. E você já fez sua parte. Falta apenas a próxima etapa.
— Você me usou como um... receptáculo?! — ela gritou, em desespero. — Um útero ambulante?!
— Eu lhe dei um sobrenome — rebateu Helena, com os olhos firmes como gelo. — Uma casa. Uma nova vida. A oportunidade de ser alguém. Você saiu da periferia para se tornar uma Villar. Sabe quantas dariam tudo para estar no seu lugar?
— Eu daria tudo para sair dele — sussurrou Isabela, com lágrimas queimando nos olhos.
Helena se inclinou um pouco, encarando-a bem de perto, sem nenhuma empatia.
— Saída não existe. E caso tente... o silêncio desta casa se transforma em gritos. Gritos que ninguém vai ouvir. Entendeu?
Isabela ficou imóvel. As lágrimas escorriam, mas ela não tinha mais força para protestar.
Helena deu um passo para trás, retomando a compostura.
— A honra de uma família está no silêncio de suas mulheres. E você vai aprender a honrar o nome que agora carrega. Ou vai afundar com ele.
Helena se virou, abrindo a porta. Antes dela sair, Isabela ouviu a última sentença de sua sogra, dita com precisão cirúrgica:
— Você já é Villar. E Villar… não desobedecem.
A porta se fechou atrás dela.
E ali, no silêncio gélido do quarto, Isabela percebeu que sua liberdade havia sido enterrada — com a verdade, a inocência, e o que restava de seus sonhos.