O silêncio da mansão Villar parecia pulsar naquela hora da noite, como se o próprio tempo tivesse decidido parar diante dos segredos que dormiam entre aquelas paredes douradas. Cada centímetro do corredor era um aviso, e Isabela sentia isso no corpo — na pele eriçada, nas mãos frias, nos pés descalços que tocavam o chão de mármore gelado como se pisassem em gelo.
A luz do abajur dentro do quarto era fraca, dourada, mas traçava sombras que dançavam nas paredes como vultos antigos. Ela hesitou na soleira antes de entrar. O robe branco que usava, presente delicadamente imposto por Helena, moldava seu corpo com desconforto. Cada costura parecia apertar sua liberdade, como se ela tivesse sido embalada e entregue, um presente sem vontade própria.
Ao fechar a porta atrás de si, o clique seco da maçaneta soou como o trancar de uma cela. O coração de Isabela disparou.
Leonardo estava ali.
Imóvel.
Deitado ao centro de uma cama ampla, coberta por lençóis que mais pareciam ter sido esticados por mãos invisíveis. Tudo estava limpo demais. Organizado demais. Morto demais.
Ele não parecia um homem em repouso. Era como uma pintura viva, um retrato que respirava. A pele dele, ainda que jovem e bem tratada, exalava uma palidez mórbida. Os cílios longos repousavam sobre as bochechas. O peito subia e descia em movimentos lentos demais para se confiar. Era belo. Assustadoramente belo. Como se a beleza, ali, fosse um aviso: cuidado com o que parece perfeito demais.
Isabela se aproximou da cama em passos pequenos, quase infantis, como se temesse acordar algo adormecido há muito tempo — não apenas o homem, mas o que quer que estivesse dormindo dentro dele.
“Meu marido”, pensou, com uma ironia amarga que queimou a garganta. Aquela palavra tinha gosto de veneno agora. Ela se recordou da cerimônia mascarada, do livro de presença, da música alegre que escondia os gritos do seu destino sendo selado. Lembrou-se das mãos de Helena segurando as dela com firmeza, guiando sua assinatura como se cravasse ferro em sua pele.
O robe deslizou um pouco no ombro, mas ela não ousou ajeitá-lo. Só queria deitar-se, descansar, desaparecer.
Foi até o canto da cama, a borda oposta ao corpo de Leonardo. Deitou-se sem fazer barulho, virada de costas para ele. Cada movimento do colchão parecia amplificado. Como se a própria cama respirasse com o homem.
Ela abraçou os joelhos, fechou os olhos e tentou fingir. Fingir que estava em outro lugar. Que aquela casa, aquela mulher, aquele corpo ao lado... não existiam.
Mas o silêncio, naquela noite, era cruel.
De repente, um som. Quase imperceptível. Um estalo seco. Como unha arranhando madeira.
Isabela abriu os olhos devagar. O corpo congelou. Um arrepio subiu pelas costas, como se algo tivesse soprado em sua nuca.
Ela se virou — devagar, muito devagar — e o mundo, de fato, parou.
Os olhos de Leonardo estavam abertos.
Verdes. Vivos. Focados nela. Sem piscar. Sem piscar.
Isabela sentiu o sangue gelar. A garganta apertou. O medo não era um sentimento naquele instante — era um instinto.
Ela não conseguiu se mover.
Nem falar.
O tempo entre o momento em que ele abriu os olhos e piscou, uma única vez, pareceu durar séculos.
— Você... — tentou dizer, mas a voz morreu na metade da garganta.
Leonardo não respondeu. Apenas observava. Como se a estudasse. Como se estivesse... esperando algo.
Então, sem aviso, ele fechou os olhos novamente. Com a mesma suavidade com que os abrira. Como se nada tivesse acontecido.
Mas algo tinha acontecido.
Isabela saltou da cama. Sentiu o chão frio sob os pés como agulhas. Correu até o sofá ao lado da janela — uma peça decorativa, pequena demais, desconfortável demais, mas que agora era sua única salvação. A única distância possível.
Ela se encolheu ali. O robe se amarrotava sob o corpo curvado, e seus braços agarravam as pernas com força, como se assim pudesse se proteger.
O coração batia tão alto que ela pensou que ele escutaria.
A noite foi longa. O quarto parecia respirar com ela. Cada som, cada suspiro vindo da cama, cada batida do relógio antigo na parede, tudo era uma tortura.
Isabela não chorou. Não podia. O medo a endurecera.
Ela apenas ficou ali.
Ouvindo. Esperando. Sentindo.
E naquele silêncio, naquela atmosfera densa e sufocante, uma certeza nasceu dentro dela:
Leonardo Villar não voltara sozinho. Algo habitava aquele corpo. Algo que dormia, sim. Mas que agora sabia seu nome, seu cheiro, sua presença. E estava à espreita. Aguardando.
Amanheceria em breve. Mas para Isabela, aquela madrugada jamais terminaria.
E o casamento... bem, ele estava apenas começando.