VITTORIO MORELLI NARRANDO
As pessoas falam de luto como se fosse um processo. Etapas, fases, superação. Mentiras bonitas que vendem bem nos livros de autoajuda. Luto, pra mim, foi um ponto final. No dia em que Giulia morreu, eu também morri. Só que continuei respirando. Ela estava linda naquela manhã. Inchada, cansada, mas linda. A gravidez tinha dado um brilho suave ao rosto dela, mesmo com os olhos pesados de tanto carregar duas vidas dentro de si. Gêmeas. Duas meninas. Meu sangue, minha herança. — Quando elas nascerem, você vai ficar ainda mais apaixonado — ela disse, sorrindo com dificuldade, segurando minha mão. E eu estava. Apaixonado por ela. Pelas meninas. Por aquela família que eu acreditava, por um instante, que me tornaria menos monstro. Mas a máfia não poupa nem os sonhos mais puros. O parto foi uma urgência. Uma hemorragia. Uma corrida contra o tempo. Vi o sangue escorrendo entre as pernas dela como se a vida fosse escoando pelo chão do hospital. A médica saiu e voltou três vezes. Nenhum dos meus seguranças falava. Os olhos deles evitavam os meus. Quando saíram da sala com os corpos embrulhados em branco, eu entendi. Giulia morreu. E as meninas também. Não houve choro. Não houve enterro. Houve silêncio. Um mês depois, enterrei o nome da minha família. O luto virou aço, virou pedra, virou raiva. A partir dali, Vittorio Morelli deixou de ser um homem com coração. E voltou a ser o que nasceu pra ser: o chefe absoluto do Círculo Nero. Me levantei da cadeira, observando o salão silencioso. A mansão era grande demais, vazia demais. O retrato de Giulia ainda estava ali na lareira, ao lado de uma pequena escultura de mármore com dois nomes gravados: Aurora e Antonella. Nomes que eu mesmo escolhi. Nomes que nunca ouviram minha voz. O telefone tocou. — Senhor Morelli, o carregamento do Leste chegou. Três contêineres. Trinta e seis mulheres no total. Assenti com a cabeça, mesmo que ele não pudesse ver. — Verifique idade, estado físico e documentação falsificada. As que forem inúteis, devolva pro fundo do mar. — Sim, senhor. A máfia mudou. Antes eram drogas, armas e proteção. Agora, os corpos são a mercadoria mais valiosa. A venda de mulheres abastece desde bordéis de luxo em Dubai até mansões privadas em Moscou. E eu? Eu comando tudo daqui. Não toco nelas. Não me importo com elas. São números. Preços. Propriedade. Mas em casos especiais… Algumas vão direto pra seleção pessoal. Às vezes como moeda de troca. Às vezes como punição. Às vezes como brinquedo. E às vezes… Como distração. Mas até isso se tornou raro. Nada me distrai por completo. Hoje em dia, eu só enxergo números. Códigos. Cargas. O que entra, o que sai. O que serve, o que precisa ser descartado. E foi por isso que nem me dei ao trabalho de descer pessoalmente quando avisaram sobre uma nova remessa que tinha chegado com erro de registro. Uma mulher trazida por engano, segundo os seguranças. Vieram me perguntar o que fazer com ela. — Coloquem na triagem secundária, longe das áreas principais. — disse sem levantar os olhos do papel. — Mas, senhor… ela tem algo diferente. A equipe achou melhor reportar direto ao senhor. Revirei os olhos, impaciente. — Diferente como? — É difícil explicar. O perfil físico é padrão, mas há… uma expressão. Um ar. Uma postura incomum. Fechei a pasta. — Façam os exames. Classifiquem. Depois decido o que fazer com ela. — Sim, senhor. Não perguntei nome. Não pedi foto. Era apenas mais uma. Mais uma entre dezenas que passavam por aqui sem nome, sem rosto, sem história. E era melhor assim. A emoção atrapalha o negócio. E eu não tinha mais espaço pra sentir nada. Me levantei da mesa e fui até a janela. Lá fora, o céu preparava mais uma tempestade. O som dos trovões misturava-se ao ronco dos carros blindados chegando com mais carregamentos. A mansão estava cheia de fantasmas. Alguns, eu mesmo enterrei. Outros… ainda insistem em ficar por perto. Naquela noite, chovia forte. O tipo de chuva que lava a rua, mas não lava nada por dentro. Eu já estava indo fechar o escritório quando um dos meus homens entrou com pressa. — Senhor Morelli. Chegou uma situação delicada. Preciso que veja com os próprios olhos. Revirei os olhos. — Se for mais um lote com mulheres drogadas ou grávidas, mande de volta. Não temos espaço pra esse tipo de erro. — Não é mulher, senhor. São… duas crianças. Gêmeas. Bebês. Vieram junto com a carga de Belgrado. Provavelmente um erro no transporte ou um negócio malfeito entre fornecedores. Os intermediários não quiseram se responsabilizar. Jogaram na nossa porta. Gelei. — Crianças? Bebês? Ele assentiu. — Estão em caixas de contenção, dormindo. Aproximadamente alguns dias de nascidas . Por um segundo, achei que era algum tipo de pegadinha cruel do destino. Mas minha curiosidade foi mais forte que meu desprezo. Desci até o porão, onde o carregamento “especial” era descarregado. A iluminação era fraca. Cheiro de plástico, metal molhado e perfume barato. Entre caixas e malas, duas pequenas figuras estavam deitadas enroladas em uma manta . Roupas simples, cabelos escuros colados na testa. Uma chupava o dedinho. A outra… me encarava. Não chorei. Não tremi. Mas senti. As duas me lembravam de algo que nunca vi, mas que ficou comigo desde sempre. Aurora e Antonella. Minhas filhas mortas. As que nunca chegaram a respirar fora do útero. As que foram enterradas embrulhadas, sem que eu pudesse olhar uma única vez para seus rostos. O silêncio das duas crianças me atingiu como uma faca. Não era medo. Era… um tipo de vazio. O mesmo que existia dentro de mim. — O que fazemos com elas? — perguntou o segurança. — Nada — respondi. — Leve-as para cima. Alimentem. Banhem. Coloquem com uma babá. Roupas novas. Cuidem como se fossem minhas. — Senhor? — Eu disse que elas ficam. Olhei para cima, com uma decisão clara nos olhos — se alguém tentar vendê-las, abro o crânio com as próprias mãos. O homem engoliu em seco e assentiu. Nesse momento, outra pessoa veio correndo. — Senhor, já tem informações nova! Segui o homem, desci até o salão subterrâneo da mansão. — Esse é o grupo é interessante que falei , senhor Morelli. Aquela em especial chamou atenção. Era ela. A mulher desacordada, de cabelos pretos grudados na testa suada, boca entreaberta, aparência fragilizada. — Veio sem documentos. Foi arrematada por engano. Mas… tem classe. Corpo limpo. Sem marcas. Pele negra de porcelana . Alguém cuidou bem dela. Me aproximei. Ela parecia… quebrada. Mas não de um jeito comum. Era um quebrado silencioso. Bonito. Feroz até no sofrimento. — Nome? — perguntei. — Nenhum confirmado. Só um pingente no pescoço com as letras M-A-V-I. Mavi.