MAVI NARRANDO
O cheiro de hospital sempre me deixou enjoada, mas naquele dia era diferente. Eu estava suando frio, a respiração curta, os olhos marejados e a dor… Meu Deus, a dor era tanta que parecia me rasgar por dentro. — Força, amor. Eu tô aqui…, a voz dele sussurrava no meu ouvido, quente e trêmula. Heitor segurava minha mão com firmeza, ajoelhado ao lado da maca, os olhos úmidos de emoção. Eu podia jurar que ele também estava sofrendo comigo. A mão dele acariciava meus cabelos grudados de suor, e os beijos que ele deixava na minha testa pareciam sinceros. — Você tá indo bem, Mavi, tão bem… só mais um pouco, tá? Eu gritei de novo, o corpo arqueando com a contração. As enfermeiras se apressavam, o médico pedia mais força. Estavam quase lá. Eu só pensava nas minhas meninas. Nas minhas filhas. As duas pequenas vidas que carreguei por quase nove meses, com medo, esperança, amor. — Elas vão ser lindas, Mavi… iguais a você — ele disse, a voz embargada, e aquilo me deu força. A dor me partia, mas eu empurrei com tudo que tinha. Um gemido, um choro — o primeiro. Um som que partiu meu coração de tão pequeno e perfeito. — Primeira nasceu, mãe — disse a enfermeira, sorrindo. Chorei. Chorei como nunca. Chorei de felicidade, de alívio, de cansaço. E ainda faltava uma. Mais uma força, mais uma onda de dor, e então, outro choro. Duas. Duas meninas. Duas partes de mim. — Elas estão bem? — perguntei, a voz embargada. — Estão perfeitas — respondeu o médico. Eram. Perfeitas. As enfermeiras trouxeram os dois pacotinhos até mim. Minhas meninas. Minhas… minhas filhas. Meus pedaços vivos. Elas tinham o rostinho pequeno, os olhos apertados, a pele rosada. — Olha só pra elas, Heitor, são nossas — sussurrei, virando o rosto pra ele. Mas ele estava distante. Ainda sorria, mas o olhar parecia… ausente. Rígido. Por um segundo, pensei ter visto frieza ali, mas passou tão rápido que achei que fosse o cansaço me confundindo. Ele se aproximou, pegou uma das bebês nos braços, olhou como se analisasse uma escultura rara. — São lindas mesmo — disse, mas sem brilho na voz. — Você foi incrível, amor. Sorri fraco. A dor no corpo começava a se dissipar, mas havia algo no ar. Algo estranho. Como se o quarto inteiro tivesse mudado de temperatura. — Vai ficar comigo um pouco? — perguntei, antes que as enfermeiras levassem as meninas pra limpeza e cuidados. — Claro… só vou avisar à família que correu tudo bem. Ele me beijou na testa e saiu do quarto com passos firmes. Algo dentro de mim gritou, mas ignorei. Eu estava exausta. Só queria dormir sabendo que minhas filhas estavam bem. Fechei os olhos por alguns minutos. Quando acordei, a luz já era diferente. O quarto estava mais vazio, o silêncio parecia ecoar. Olhei ao redor, procurando Heitor. Nada. Nenhum sinal dele. Também não havia sinal das meninas. Nenhum chorinho, nenhuma movimentação. — Com licença — chamei, tentando me levantar um pouco. — Enfermeira? Uma mulher entrou, gentil. — Oi, mamãe. Como está se sentindo? — Tô melhor, Mas minhas filhas… onde estão? Ela franziu o cenho. — Achei que já tinham trazido de volta do berçário… vou verificar, tá? Ela saiu, e algo se revirou dentro de mim. Um frio no estômago. Um aperto. Dez minutos depois, ela voltou com outra mulher. Olhares nervosos, trocas de palavras silenciosas. Minha respiração começou a acelerar. — O que foi? — perguntei, o tom subindo. — Cadê minhas filhas? A primeira mulher respirou fundo. — O berçário está verificando, Mavi, talvez tenha sido um mal-entendido, tá bom? — Que mal-entendido?! Me diz onde estão minhas filhas! — gritei, o peito apertado. A segunda enfermeira, mais velha, tentou me acalmar, mas seus olhos denunciavam o caos que já se instalava. Me levantei mesmo sentindo dor, puxando o soro com raiva. — Cadê o Heitor?! Ele disse que ia avisar a família! Ele não voltou! Cadê ele?! Os olhos das duas se encontraram. Eu percebi. Naquele segundo, eu soube. Algo estava muito errado. Tentei sair do quarto, mas fui contida. Vieram mais dois profissionais. Me sedaram. A dor física voltou, misturada com o pânico, o desespero, o grito preso. Antes de apagar, ouvi a frase que partiria minha alma. — Não encontramos registro das bebês. Nem do acompanhante. Ele sumiu com elas. Acordei horas depois, ou talvez dias. O tempo já não fazia sentido. A sala era outra, um quarto diferente, com janelas fechadas e cheiro de tranquilizante no ar. Minha mãe estava ali. Chorava em silêncio, segurando minha mão. — Foi ele, não foi? — sussurrei. Ela assentiu, a boca trêmula. Meus olhos encheram d’água de novo. — Ele me prometeu… ele dizia que amava… — minha voz se desfez. Minha mãe apertou minha mão. — A polícia tá procurando, filha… vão encontrar… Mas eu já sabia. Heitor tinha sumido. Com minhas filhas. Com meu coração. Com tudo que me restava. E naquele momento, pela primeira vez, eu senti o gosto real da palavra ódio. A dor física era suportável. O que doía de verdade era a ausência. O vazio doía. O berço vazio. O colo vazio. A ausência das vozes, do choro, do toque das pequenas mãos que deveriam estar entrelaçadas às minhas. Doía respirar. Doía existir. Os dias seguintes foram um borrão de vozes, polícia, perguntas inúteis, cafés frios e olhares de pena. Todos diziam que estavam “fazendo o possível”, mas ninguém me devolvia minhas filhas. Ninguém me devolvia o tempo. Heitor sumiu sem deixar rastro. Sem documento, sem carro, sem câmeras. Como se tivesse evaporado da Terra com minhas filhas nos braços. — Ele planejou tudo, Mavi — disse minha mãe, uma noite, com a voz trêmula. — Fingiu por anos, fez você confiar… e no dia mais importante da sua vida, arrancou tudo de você. Eu não consegui responder. Só de ouvir o nome dele meu estômago se contorcia. Na minha cabeça, ecoava a voz dele, naquele último momento antes de sair: “Eu vou avisar sua família.” Avisar, o quê? Que tinha acabado com a minha? Uma semana depois, os médicos me liberaram. Me deram alta sem me curar de nada. Acordei todos os dias esperando que fosse só um pesadelo. Que alguém fosse entrar pela porta e dizer “achamos elas”. Mas isso nunca acontecia. E assim fui virando uma sombra de mim mesma. Uma mulher vazia, magra, com olheiras roxas e mãos sempre trêmulas. Até a luz dos meus olhos parecia ter sido sequestrada com elas. — Ele tirou tudo de mim — sussurrei um dia, olhando pro teto do quarto escuro. — Ele me deixou só… com meu próprio corpo como prisão. Os dias passaram sem cor. Minha mãe fazia o possível pra me manter viva, mas eu mal falava. Mal comia. Só existia. E numa dessas manhãs cinzentas, com a TV ligada baixinho no canto do quarto, eu ouvi a frase que gelou minha espinha: — “A Polícia Federal interceptou esta manhã um contêiner suspeito vindo da região Sul. Dentro, haviam compartimentos vazios e vestígios que indicam transporte humano — entre eles, itens infantis.” Meus olhos se voltaram lentamente pra tela. A imagem mostrava um galpão industrial, policiais vasculhando caixas, bonecas partidas, chupetas espalhadas no chão sujo, e entre os itens… uma manta rosa-claro bordada pelas mãos da minha mãe . A manta — era a mesma. Eu me levantei de súbito, o corpo trêmulo, a respiração falhando. A manta foi a que minha mãe costurou com tanto carinho semanas antes do parto!