VITTORIO NARRANDO
A primeira coisa que notei quando ela abriu os olhos não foi a cor, nem o formato. Foi o ódio. Não um ódio explosivo, desesperado, daqueles que gritam. Era um ódio quieto, contido, que morava dentro do peito. O tipo de ódio que sobrevive ao tempo. E se transforma. Ela piscou, confusa, como se estivesse tentando entender onde estava. Os olhos saltaram de um canto ao outro do cômodo, reconhecendo o desconhecido. Quando me viu, congelou. — Onde… onde eu tô? A voz dela veio rouca, falha. Ainda estava grogue dos sedativos. Mesmo assim, havia firmeza. Um tipo de resistência latente, embutida entre as palavras. — Em segurança — respondi, encostado na poltrona à frente da cama onde ela estava amarrada pelos tornozelos. — O que é isso? — Ela puxou as pernas. — Me solta! — Quando eu souber quem é você e por que foi parar na minha triagem pessoal por engano… talvez. Ela me olhou com um tipo de desprezo que ninguém mais se atrevia a ter diante de mim. E, por alguma razão, aquilo não me ofendeu. Me instigou. A maioria chega aqui chorando. Implorando. Barganhando. Ela não. Ela parecia pronta pra morder, mesmo se não tivesse dente Mavi. É isso? — perguntei, apontando pro pingente. Ela hesitou. Quase imperceptível. Mas eu vi. — E se for? Inclinei o corpo pra frente, os cotovelos nos joelhos, e encarei de perto. — Então por que estava sendo transportada como mercadoria de baixo nível em uma carga com destino a Praga? — Eu não sei! — ela gritou. — Eu acordei amarrada! Eu fui dopada! Eu… Ela se calou. A dor veio junto com a lembrança. Os olhos dela se encheram d’água, mas ela não chorou. Eu conhecia aquele tipo de mulher. As que perdem tudo e ainda se recusam a desmoronar diante dos olhos dos outros. Havia um tipo de beleza em sua ruína. Uma poesia crua na forma como o sofrimento desenhava seu rosto. — Alimente-a. Hidrate-a. Quero ela viva, lúcida e forte. — Por quanto tempo? — perguntou meu segurança. — Até que eu saiba o que fazer com ela. Levantei e saí do quarto. O corredor da ala subterrânea era abafado, silencioso, cheio de grades eletrônicas e câmeras escondidas. Tudo sob controle. Tudo sob meu domínio. Ou quase tudo. Quando cheguei ao andar principal, a babá já me esperava com as duas pequenas nos braços. — A mas gordinha dormiu depois da mamadeira. A outra está inquieta, parece mais atenta. Peguei a inquieta no colo. Ela me olhou com aqueles olhos escuros, profundos, tão parecidos com os que eu nunca conheci. — E o nome dela? — O senhor disse que ia batizar. Não sabemos os verdadeiros. Suspirei. Olhei de volta pra criança. Ela tocou meu rosto com uma das mãos miúdas. — Essa será Antonella — disse. — E a outra? — Aurora. A babá sorriu, com doçura. Não sabia o que esses nomes significavam pra mim. Pra ela, era só mais um gesto afetuoso de um homem estranho com poder demais. Mas pra mim… Era um pacto silencioso com o passado. Voltei pro escritório. Três novos relatórios me esperavam sobre operações de Varsóvia, movimentações em Nápoles e uma interferência em Marselha. Aparentemente, um dos nossos cargueiros foi interceptado por agentes disfarçados. — E os corpos? — perguntei, ao atender a ligação do comandante. — Vinte e quatro mulheres foram resgatadas. Quatro morreram no transporte. As duas crianças… sumiram. Acreditamos que foram vendidas antes da batida. — Que crianças? — Um carregamento separado. Gêmeas. Bebês. O fornecedor registrou saída antes da entrega formal. Estamos tentando rastrear. Aparentemente, houve erro no embarque. Meu sangue gelou. — E o fornecedor? — Morto. Balas no rosto. Execução limpa. Mordi o lábio. Respirei fundo. A coincidência era grande demais pra ignorar. O estalo da chuva no vidro era o único som que me fazia companhia naquela madrugada. Estava terminando de revisar a lista de remessas do Círculo Nero quando bateram à porta do meu escritório. — Entre — disse sem tirar os olhos da planilha digital. Era Enzo. Um dos poucos que sabiam bater antes de falar. — Senhor Morelli… precisamos de uma orientação sobre o caso da mulher desacordada que veio no carregamento de Belgrado. Aquela… sem documentos. Suspirei e larguei a caneta sobre a mesa. — A que foi arrematada por engano? — Essa mesma. A triagem mandou pra observação. Não apresenta sinais de drogas, doenças, nem marcas. Corpo limpo, perfil fora do padrão comum. Mas… estranhamente calma. Silenciosa. Fria, até. — Fria? — ergui uma sobrancelha. — É como se ela não tivesse mais medo de nada, senhor. Nem dos seguranças, nem do lugar, nem do futuro. Só… olha pro teto. Como se já tivesse perdido tudo. Fiquei em silêncio por alguns segundos. Não era comum alguém me relatar esse tipo de comportamento. Gritar, implorar, ameaçar, chorar… era o que quase todas faziam nas primeiras horas. Mas essa aí… — A triagem sugeriu encaminhamento pra ala secundária ou descarte. Mas… sinceramente, senhor, ela não se encaixa em nenhuma das categorias. Parece… diferente. Enzo esperou minha decisão em silêncio. — Mandem pra boate La Notte. Não no palco. Não com os clientes. Quero ela no bar ou na recepção. Algo discreto. Onde eu possa acompanhar sem exposição. E diga a Rocco que, se ela encostar em qualquer homem, eu quebro os dentes dele. — E se ela se recusar? — caso ela recuse, avise ela.... Caminhei ao homem, falei as palavras em voz baixa.