Allegra Bianchi acreditava no amor. Acreditava tanto que quase desapareceu por causa dele. Depois de um relacionamento tóxico com um influenciador italiano que moldou sua vida, sua voz e até seus sonhos, Allegra decide fugir. Sozinha, com uma mala pequena e uma cicatriz invisível no peito, ela recomeça em Paris — com a ajuda da melhor amiga, de cafés sem pressa, de tintas esquecidas e de uma cidade que respira arte em cada esquina. Mas Paris tem seus próprios segredos. E entre ruas antigas, convites inesperados e música nas praças, Allegra encontra um violinista misterioso, Lucca Moreau, que também tenta juntar os cacos de uma vida desfeita. Dois corações partidos. Uma cidade inteira para se perder — e talvez, se encontrar. Mil Vezes Você é um romance sobre reconstrução, liberdade, amizade verdadeira e o som que a vida faz quando a gente finalmente aprende a escutar.
Ler maisNápoles parecia ensolarada demais para um dia como aquele. O céu estava limpo, o mar ao fundo brilhava como vidro partido e, da sacada do apartamento, eu via as varandas coloridas balançando roupas recém-lavadas ao vento.
Mas dentro do nosso apartamento, tudo era outra coisa.
A luz não entrava direito. Enzo odiava reflexos na tela quando gravava. As cortinas grossas, que ele mandou instalar “pra melhorar a estética dos vídeos”, também abafavam o ar. Como se a casa estivesse segurando a respiração comigo. O ar-condicionado zunia no canto da sala, mesmo com a temperatura amena. Era outro capricho dele: manter o ambiente "profissional" o tempo todo.
— Você ainda não colocou a mesa? — ele perguntou, sem levantar os olhos do celular.
Eu já sabia que não era uma pergunta.
— Já tô indo — respondi, e o tom da minha voz soou mais baixo do que eu queria.
No fundo, a culpa nem era da mesa posta. Era porque ele tinha dormido mal. Porque os números no último vídeo caíram. Porque alguém nos comentários disse que eu parecia “triste” na última gravação.
— As pessoas notam, Allegra — ele disse ontem, depois de revisar o conteúdo comigo. — Você tem que sorrir mais. Ser mais leve. Você era assim no começo.
Eu me perguntei se eu era mesmo assim no começo ou se só estava tentando ser o que ele queria. Acho que, no fundo, eu queria agradar. Queria caber em algum lugar. E, por um tempo, caber nele pareceu o suficiente.
Coloquei os pratos no balcão branco da cozinha, do jeito que ele gostava — simétricos, sem talheres tortos. O silêncio entre nós era afiado, e mesmo assim ele filmava stories. Sorria para o celular como se estivéssemos em lua de mel.
— Bom dia, meus amores. Allegra tá aqui preparando nosso brunch de sábado, como sempre. Essa mulher é um espetáculo, né?
Eu virei de costas. Não por vergonha. Mas porque não queria ver a forma como ele moldava a nossa vida.
Fui até o armário, peguei o pão, o azeite, os frios. Fiz tudo no automático. Enquanto isso, lá fora, alguém tocava música de dentro de um carro. Eu reconheci o som: Volare. Tão clichê quanto nostálgico. Fechei os olhos por um segundo e desejei estar em outro lugar. Ou ser outra coisa.
Por um instante, me vi na faculdade outra vez, entrando no ateliê com os dedos manchados de tinta, carregando meu sketchbook cheio de rabiscos tortos. Naquela época, eu era bagunçada. Intensa. Sincera. E, principalmente, minha. Enzo dizia que eu brilhava, que tinha alma de artista. Mas depois vieram as "sugestões". Primeiro para mudar o estilo, depois para postar menos meus desenhos. Até que veio a sugestão final:
— Por que você não tranca o curso? Com tanto trabalho com as marcas, vai ficar puxado.
Tradução: ele não queria mais aquilo. E eu obedeci. Por amor, eu dizia a mim mesma. Mas hoje, me pareceu mais como por medo. Medo de perdê-lo, de estar sozinha, de não ser suficiente.
— Você vai sair hoje? — perguntei, sem olhar pra ele.
— Não sei. Tem evento de marca, mas ainda tô vendo se vale a pena aparecer.
Tradução: se os fotógrafos certos forem, ele vai. Se não, talvez fique aqui. Talvez comente do meu cabelo. Da minha roupa. Talvez diga que pareço uma "versão opaca" de mim mesma.
Pus o último guardanapo na mesa e respirei fundo. Minhas mãos tremiam, mas de leve. Como no início, quando ele ainda pedia desculpas depois das palavras duras. Agora ele não pedia mais. E eu também já não tremia tanto.
Olhei ao redor: o apartamento com vista para o mar, o piso de mármore branco, as plantas artificiais que ele dizia serem "neutras". Não havia nada nosso ali. Apenas dele. Dele e dos seguidores.
Me sentei na beirada do sofá, segurando a caneca de café que esfriava rápido. O gosto era amargo demais, mesmo com o açúcar. Talvez eu tivesse me acostumado ao amargo.
Do lado de fora, uma senhora regava as plantas na sacada, sorrindo para o gato que ronronava nos peitoris. Vi dois adolescentes rindo e dividindo fones de ouvido. E por um segundo, tudo isso pareceu mais real do que a minha própria vida.
Mas o que ninguém via — nem ele — era que eu já estava indo embora há semanas. Um milímetro por dia. Uma escolha silenciosa. Um olhar a menos. Um desejo contido. Uma parte de mim sendo recolhida.
Eu ainda estava ali. Mas já era quase outra.
E talvez... talvez fosse isso o que me restava.
Um dia de cada vez. Até ter coragem de partir de verdade.
Mil vezes amor. Mil vezes lar.O dia acordou devagar, com a luz filtrando pelas cortinas da sala, como se até o sol tivesse aprendido a respeitar o ritmo calmo da casa.Na cozinha, Allegra mexia o café com uma colher de pau, distraída.Lucca estava no quintal, afinando o violino — ele dizia que a madeira respondia melhor quando tocada ao ar livre. Louis, como sempre, havia conquistado a almofada mais ensolarada da casa.A tranquilidade de Annecy tinha virado mais do que um refúgio.Era um lugar onde a arte não precisava ser urgente.Onde o amor não exigia espetáculo.Onde existir já era tudo.Na mesa, uma carta esperava.Viera com o novo exemplar de Reinvenções, agora traduzido para três idiomas, com uma sobrecapa em papel reciclado e uma frase de Allegra gravada em dourado:“Ficar, quando é por amor, é o maior dos movimentos.”Ela abriu o envelope com dedos calmos.“Querida Allegra,O lançamento foi um sucesso.A Bienal de Florença quer organizar uma exposição com as obras originais
A caneca de chá ainda fumegava ao lado dos pincéis quando Allegra terminou o último detalhe.Fechou os olhos, passou os dedos pelo papel seco e sorriu.— Pronto — sussurrou. — Está pronto.A última ilustração.A capa do livro.A Allegra que atravessou todas as sombras… agora, inteira sobre o papel.Era uma pintura em aquarela, delicada e honesta.Mostrava uma mulher sentada em frente a uma janela aberta, com o sol entrando devagar, pincéis espalhados aos pés e um violino encostado na parede.No canto da tela, quase imperceptível, um gato laranja dormia sobre uma almofada azul.Naquela semana, a casa de Annecy virou um pequeno redemoinho de alegria.Sophia colava etiquetas em envelopes com os nomes dos primeiros compradores do livro. Lucca cuidava do som da trilha instrumental que acompanharia a edição especial. Louis, claro, dormia sobre todos os papéis importantes.— Ele é um censor artístico — dizia Allegra, rindo. — Se Louis não deita em cima, é porque não tá bom o suficiente.Na q
Acordar em Annecy tinha o ritmo de quem finalmente respirava com o corpo inteiro.Allegra abriu os olhos devagar, sentindo o cheiro de lavanda vindo da janela entreaberta. O som das folhas se movendo lá fora era como uma trilha sonora composta só para ela.Lucca já estava de pé, na cozinha, assobiando baixinho enquanto preparava café. Allegra sorriu ao ouvi-lo desafinar.Vestiu o suéter de lã, desceu devagar e sentou no batente da porta da frente, onde o sol da manhã se estendia como um tapete dourado.Pegou o celular — mais por costume do que por urgência.Uma nova notificação.Assunto: Publicação internacional de “Reinvenções”Remetente: Edizioni Luce e Voce, Florença.Respirou fundo.Clicou.“Estimada Allegra Bianchi,Ficamos emocionados com a força poética de suas obras.Nossa proposta é para um livro-arte: um diário visual com textos, pinturas e processos.Queremos publicar Reinvenções em parceria com uma fundação europeia.E, se desejar, você pode ilustrar a capa com algo inédit
Voltar a Annecy foi como abrir um livro já lido — mas com olhos diferentes.A estrada era a mesma, o cheiro de floresta, os campos amarelados ao longe, o som do vento contra os vidros. Mas Allegra sentia tudo de um jeito novo.Não era mais visitante.Nem passageira.Era alguém que voltava com a intenção de ficar — ainda que não pra sempre.Mas por agora.— Parece menor — disse ela, quando a casa apareceu atrás do caminho de pedras.— Ou você que tá maior — respondeu Lucca, com um sorriso tranquilo.Assim que entraram, Allegra tirou os sapatos e caminhou direto até a varanda dos fundos.O lago estava espelhado, sem uma única onda. O céu tinha tons de violeta e âmbar.Ela ficou ali por um tempo. Respirando.Lucca apareceu logo depois com duas canecas de chá quente.— Acho que nunca vi esse lugar tão silencioso.— Não é silêncio — ela disse. — É escuta.Durante a tarde, arrumaram o quarto de hóspedes, abriram a antiga garagem — onde Lucca pretendia guardar seus equipamentos de gravação —
A porta do apartamento se abriu com um rangido leve e familiar, como se até o som quisesse dizer:Bem-vindos de volta.— Surpresa! — gritou Sophia da cozinha, com uma espátula na mão e um avental florido amarrado com exagero.Louis veio correndo como uma flecha laranja, subiu no sofá, olhou Allegra de cima a baixo e deu um miado indignado.— Ele tá bravo porque você desapareceu por duas semanas — explicou Sophia. — Mas já já ele te perdoa. Tem salmão no pote.Allegra riu, largando a mala perto da parede.— É bom estar em casa.Lucca entrou logo depois, carregando a tela embrulhada e o estojo do violino. Sorriu ao ver Sophia, e ela o abraçou com aquele afeto sincero que não se força.— E aí, maestro?— E aí, editora genial?— Quero saber tudo — ela apontou para os dois, depois para o sofá, depois para a cozinha. — Mas antes: comida. Preparei um risoto de cogumelos que aprendi com um italiano maluco no TikTok.Enquanto o jantar esquentava, Allegra foi até o quarto.O lençol ainda tinha
Na manhã seguinte à exposição, o sol entrou pela janela com um dourado manso, como se soubesse o que aquela luz significava.O último dia na Casa de la Llum.Allegra acordou devagar, sentindo o cheiro de café recém-passado vindo da cozinha. Lucca já estava lá, com um jornal dobrado, o cabelo bagunçado e o olhar calmo de quem entende que as despedidas não precisam ser tristes — só verdadeiras.— Dormiu bem? — ele perguntou, servindo duas xícaras.— Dormi inteira.Enquanto tomavam café no quintal, o celular de Allegra vibrou.Uma notificação.E-mail de: Instituto de Arte Contemporânea de FlorençaAssunto: “Convite para residência artística – outubro”Ela abriu com os olhos ainda ajustando o foco, o coração levemente acelerado.“Estimada Allegra,Seu nome chegou até nós pelas mãos de Esperanza Ruiz e Lina Nogueira.Acreditamos que seu trabalho dialoga com a proposta do nosso próximo programa:‘Fragmentos do Corpo: arte como memória e resistência.’Seria uma honra tê-la conosco em Florenç
Último capítulo