Na manhã de sábado, fui acordada pelo som de talheres caindo e um cheiro indecifrável vindo da cozinha. Quando apareci na porta, ainda com os olhos meio fechados, encontrei Sophia girando uma espátula no ar como se estivesse apresentando um programa de culinária.
— Panquecas! — anunciou, com entusiasmo demais para aquela hora. — Hoje acordei com espírito americano. E com vontade de usar a Nutella que está quase vencendo.
Ela estava com o cabelo preso em um coque torto e o avental cheio de farinha, enquanto uma playlist francesa animada tocava ao fundo, ignorando completamente qualquer noção de bom senso matinal.
— Isso aqui parece uma performance artística — comentei, rindo enquanto me encostava no batente da porta.
— Tudo é arte, mon amour — respondeu, com sotaque falso e uma piscadinha. — Você vai sair hoje?
Peguei uma caneca, me servi de café e fiquei um instante olhando pela janela da sala, onde os prédios antigos se esticavam sob um céu acinzentado, mas promissor.
— Acho que sim. Preciso... andar. Sozinha.
Sophia assentiu, sem surpresa. Me conhecia o suficiente para não perguntar por quê.
— Cuidado com os franceses lindos demais. Eles tendem a quebrar corações com sotaque — disse, lambendo um pouco de Nutella do polegar.
Revirei os olhos, mas não consegui conter o riso.
Me troquei com calma. Vesti meu suéter preferido, aquele azul com cheiro de brechó e começo. Prendi o cabelo com um lenço florido que comprei dois dias antes, quase sem pensar, e coloquei o caderno dentro da bolsa.
Saí sem destino certo. Paris era um convite para o acaso. As ruas estavam vivas, mesmo em silêncio. Crianças empurravam scooters, garçons equilibravam bandejas em cafés lotados, e flores invadiam janelas com uma ousadia que só a primavera conhece.
Passei por um mercado ao ar livre, onde frutas cítricas coloriam as barracas e o cheiro de pão recém-assado se espalhava como um abraço. Um senhor vendia lavandas secas em saquinhos bordados. Uma senhora discutia o preço de tomates como se estivesse em um debate político.
Segui caminhando até o Jardin des Plantes. O parque era um dos lugares preferidos de Sophia, e eu estava começando a entender por quê. Os caminhos de terra batida serpenteavam entre árvores tortas e bancos de madeira gastos pelo tempo. Sentei-me perto da estufa de vidro, onde o vapor criava reflexos curiosos no ar.
Tirei o caderno e comecei a desenhar. Galhos secos. Crianças correndo atrás de pombos. Um casal dividindo um fone de ouvido.
Mas, no fundo, meus ouvidos estavam à procura de outra coisa.
O som.
Ele voltou.
Mais nítido. Mais perto.
Como se tivesse sido libertado de onde quer que estivesse escondido.
Era uma melodia nova, mas feita do mesmo material invisível daquela outra. Um som que não se explicava — apenas se sentia. Como nostalgia de algo que nunca se viveu.
Levantei sem pensar.
Segui o som, guiada mais pelo peito do que pelos pés.
Atravessei um pequeno arco de pedra coberto de heras, dobrei à esquerda numa alameda estreita, passei por um grupo de jovens sentados no chão discutindo arte ou política — ou talvez os dois, do jeito francês de sempre — e então o vi.
Ele.
Sentado num banco de madeira, de costas para mim. Tocava com os olhos fechados, o corpo levemente curvado, como se o violino fosse um órgão vital.
Não havia chapéu no chão, nem estojo aberto para moedas.
Não era performance.
Era desabafo.
A música parecia nascer dele e se dissolver no mundo, como se não houvesse barreira entre dentro e fora. Cada nota carregava algo que não cabia em palavras.
Fiquei parada.
Não queria interromper.
Nem ser notada.
Apenas... olhar.
Os cabelos castanhos caíam de forma displicente sobre a nuca. O casaco escuro estava gasto nos cotovelos. Os tênis — velhos e sujos — pareciam ter andado por mais de um continente.
E ainda assim... havia beleza.
Uma beleza crua, sem vaidade.
A música terminou com lentidão, como quem não quer se despedir. Ele baixou o arco devagar, respirou fundo. Por um momento, virou o rosto para o lado.
E nossos olhos se encontraram.
Só por um instante.
Mas o instante foi tudo.
Um arrepio me percorreu.
Meu coração tropeçou em alguma lembrança que ainda não existia.
Olhei para o chão, como se fingir distração pudesse desfazer o momento. Quando voltei a encará-lo, ele já estava guardando o violino. Fez isso com calma, sem pressa. Como quem sabe que vai tocar de novo em breve.
Não me aproximei.
Não consegui.
Havia algo sagrado naquele espaço. Como se a arte tivesse desenhado uma linha invisível ao redor dele, e eu soubesse — intuitivamente — que ainda não era hora de cruzá-la.
Me afastei devagar. Voltei pelo mesmo caminho, as mãos frias, o peito quente.
Passei por uma fonte, por um cachorro que me seguiu por alguns metros, por uma criança que me sorriu sem motivo. Mas tudo parecia envolto por um novo silêncio — o tipo de silêncio que vem depois de algo importante acontecer.
Cheguei em casa com os pés cansados e o coração inquieto.
Sophia estava no sofá, com uma máscara de argila no rosto e um livro aberto no colo.
— E aí? Descobriu o sentido da vida?
— Não — respondi, tirando o casaco. — Mas talvez tenha visto um pedacinho dela tocando violino.
Ela franziu a testa, sem entender. Eu sorri. Nem eu sabia explicar.
Fui até meu quarto, acendi o abajur e tirei o caderno da bolsa.
Dessa vez, não desenhei.
Só escrevi uma frase no canto da página em branco:
“Algumas músicas nos encontram antes mesmo de sabermos que estávamos perdidas.”
Fechei o caderno com cuidado.
Ainda não sabia quem ele era.
Mas tinha certeza de uma coisa:
Essa não seria a última vez.