Mil Vezes Você
Mil Vezes Você
Por: Schana Fockink
Capítulo 1

Nápoles parecia ensolarada demais para um dia como aquele. O céu estava limpo, o mar ao fundo brilhava como vidro partido e, da sacada do apartamento, eu via as varandas coloridas balançando roupas recém-lavadas ao vento.

Mas dentro do nosso apartamento, tudo era outra coisa.

A luz não entrava direito. Enzo odiava reflexos na tela quando gravava. As cortinas grossas, que ele mandou instalar “pra melhorar a estética dos vídeos”, também abafavam o ar. Como se a casa estivesse segurando a respiração comigo. O ar-condicionado zunia no canto da sala, mesmo com a temperatura amena. Era outro capricho dele: manter o ambiente "profissional" o tempo todo.

— Você ainda não colocou a mesa? — ele perguntou, sem levantar os olhos do celular.

Eu já sabia que não era uma pergunta.

— Já tô indo — respondi, e o tom da minha voz soou mais baixo do que eu queria.

No fundo, a culpa nem era da mesa posta. Era porque ele tinha dormido mal. Porque os números no último vídeo caíram. Porque alguém nos comentários disse que eu parecia “triste” na última gravação.

— As pessoas notam, Allegra — ele disse ontem, depois de revisar o conteúdo comigo. — Você tem que sorrir mais. Ser mais leve. Você era assim no começo.

Eu me perguntei se eu era mesmo assim no começo ou se só estava tentando ser o que ele queria. Acho que, no fundo, eu queria agradar. Queria caber em algum lugar. E, por um tempo, caber nele pareceu o suficiente.

Coloquei os pratos no balcão branco da cozinha, do jeito que ele gostava — simétricos, sem talheres tortos. O silêncio entre nós era afiado, e mesmo assim ele filmava stories. Sorria para o celular como se estivéssemos em lua de mel.

— Bom dia, meus amores. Allegra tá aqui preparando nosso brunch de sábado, como sempre. Essa mulher é um espetáculo, né?

Eu virei de costas. Não por vergonha. Mas porque não queria ver a forma como ele moldava a nossa vida.

Fui até o armário, peguei o pão, o azeite, os frios. Fiz tudo no automático. Enquanto isso, lá fora, alguém tocava música de dentro de um carro. Eu reconheci o som: Volare. Tão clichê quanto nostálgico. Fechei os olhos por um segundo e desejei estar em outro lugar. Ou ser outra coisa.

Por um instante, me vi na faculdade outra vez, entrando no ateliê com os dedos manchados de tinta, carregando meu sketchbook cheio de rabiscos tortos. Naquela época, eu era bagunçada. Intensa. Sincera. E, principalmente, minha. Enzo dizia que eu brilhava, que tinha alma de artista. Mas depois vieram as "sugestões". Primeiro para mudar o estilo, depois para postar menos meus desenhos. Até que veio a sugestão final:

— Por que você não tranca o curso? Com tanto trabalho com as marcas, vai ficar puxado.

Tradução: ele não queria mais aquilo. E eu obedeci. Por amor, eu dizia a mim mesma. Mas hoje, me pareceu mais como por medo. Medo de perdê-lo, de estar sozinha, de não ser suficiente.

— Você vai sair hoje? — perguntei, sem olhar pra ele.

— Não sei. Tem evento de marca, mas ainda tô vendo se vale a pena aparecer.

Tradução: se os fotógrafos certos forem, ele vai. Se não, talvez fique aqui. Talvez comente do meu cabelo. Da minha roupa. Talvez diga que pareço uma "versão opaca" de mim mesma.

Pus o último guardanapo na mesa e respirei fundo. Minhas mãos tremiam, mas de leve. Como no início, quando ele ainda pedia desculpas depois das palavras duras. Agora ele não pedia mais. E eu também já não tremia tanto.

Olhei ao redor: o apartamento com vista para o mar, o piso de mármore branco, as plantas artificiais que ele dizia serem "neutras". Não havia nada nosso ali. Apenas dele. Dele e dos seguidores.

Me sentei na beirada do sofá, segurando a caneca de café que esfriava rápido. O gosto era amargo demais, mesmo com o açúcar. Talvez eu tivesse me acostumado ao amargo.

Do lado de fora, uma senhora regava as plantas na sacada, sorrindo para o gato que ronronava nos peitoris. Vi dois adolescentes rindo e dividindo fones de ouvido. E por um segundo, tudo isso pareceu mais real do que a minha própria vida.

Mas o que ninguém via — nem ele — era que eu já estava indo embora há semanas. Um milímetro por dia. Uma escolha silenciosa. Um olhar a menos. Um desejo contido. Uma parte de mim sendo recolhida.

Eu ainda estava ali. Mas já era quase outra.

E talvez... talvez fosse isso o que me restava.

Um dia de cada vez. Até ter coragem de partir de verdade.

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