Na tarde de quarta-feira, Sophia me arrastou para um brechó no Marais com a empolgação de quem tinha descoberto a cura de todos os males.
— Olha isso, Allegra. Esse casaco tem a sua alma — disse ela, segurando um sobretudo caramelo de botões tortos.
— Eu nem sabia que minha alma era um sobretudo — respondi, rindo pela primeira vez em dias.
Era estranho como certas coisas pequenas — um casaco velho, um colar esquisito, o cheiro de roupas esquecidas — conseguiam abrir espaço dentro de mim. Como se os detalhes tivessem começado a importar de novo.
Saímos de lá com duas sacolas: um suéter azul de tricô antigo que parecia abraçar o corpo e um colar de conchinhas que não fazia o menor sentido. Mas era bonito. Era leve. Era meu.
Passamos numa padaria que parecia saída de um filme, com luzes amarelas e cheiro de baunilha espalhando-se pela rua. Compramos croissants amanteigados e chocolate quente. Nos sentamos numa pracinha pequena, sem pressa alguma.
Sophia falava sobre um projeto de escrita que queria começar, e eu deixava as palavras dela me envolverem como uma música de fundo. O céu estava limpo, com nuvens ralas, e o mundo parecia — por um instante — possível de novo.
— A vida tá começando de novo, Allegra. Mesmo que você ainda não perceba.
Olhei para ela, tentando absorver aquela frase.
Eu queria acreditar.
E talvez… em pedaços, já estivesse começando.
À noite, deitei na cama do quarto que agora era meu — o antigo quarto da ex-flatmate de Sophia. As paredes ainda guardavam marcas de quadros, pôsteres, e uma linha fina onde o sol batia toda manhã. A colcha era macia, cheirava a lavanda e café.
Fiquei observando o teto, ouvindo os sons da cidade que vinham da janela entreaberta. Um cachorro latindo ao longe, alguém rindo distante, uma porta rangendo no andar de cima.
Paris parecia viva até no silêncio.
Na manhã seguinte, vesti o suéter azul, prendi o cabelo com um lenço florido que achei no fundo da mala e saí sozinha. Precisava sentir a cidade com os meus próprios passos.
Levei o caderno que havia começado a usar — o das palavras soltas, dos pequenos começos — e andei sem rumo.
Andar por Paris era como mergulhar num livro sem fim. A cada esquina, uma nova página. Uma nova história. Um novo personagem cruzando meu caminho.
Passei por um florista montando arranjos na calçada. Por uma senhora tocando acordeão com um chapéu repleto de moedas. Por uma criança pulando nas poças com botas vermelhas.
Tudo parecia poesia em movimento.
Me sentei em um banco de pedra próximo ao rio Sena. As folhas caíam como se obedecessem a uma coreografia secreta. O céu refletia na água com uma calma impossível.
Abri o caderno.
Comecei com traços soltos. Testando a memória das minhas mãos. As pontas dos dedos tremiam um pouco, como se estivessem reencontrando um idioma esquecido.
Desenhei a ponte à minha frente.
As árvores despidas.
Um barco passando, lento.
Depois vieram os detalhes. As sombras. Os contornos.
Era como se eu estivesse me encontrando de novo.
Rascunho por rascunho.
E então… eu ouvi.
Um som delicado, flutuante, quase tímido.
Violino.
Vinha de alguma rua próxima. Era suave, como um sussurro dançando entre as árvores.
Não era uma melodia conhecida. Não era Bach, nem Vivaldi.
Era algo improvisado.
Vivo. Dolorido. Quase como um desabafo em forma de música.
Levantei os olhos, tentando encontrar a origem.
Mas não vi ninguém. Apenas vozes distantes, passos apressados, uma bicicleta passando devagar.
O som persistia.
Não era uma apresentação. Não era um show.
Era íntimo.
Como se alguém estivesse tocando só para si… ou para mim.
E de repente, senti tudo.
Um arrepio na pele.
Uma vontade estranha de chorar.
Uma lembrança que eu nem sabia que existia.
Era como se a música tivesse aberto uma porta que eu mantinha trancada há muito tempo.
Guardei o caderno devagar.
Levantei.
Deixei o olhar seguir o som.Mas ele já tinha parado.
O silêncio que veio depois foi quase cruel. Como se o universo tivesse interrompido algo sagrado.
Fiquei ali, parada, com o coração acelerado sem motivo aparente.
Ou talvez com todos os motivos do mundo.
Voltei para casa sem pressa. Com a alma mexida, mas estranhamente grata.
Sophia estava na cozinha, tentando preparar alguma coisa que envolvia massa e caos. Farinha espalhada na pia, molho vermelho no avental, e um livro de receitas aberto na página errada.
— Sobreviveu à aventura? — ela perguntou, com o cabelo preso de qualquer jeito e um sorriso que valia mais que qualquer resposta.
— Sobrevivi. E encontrei um violino que quase me fez chorar no meio da rua.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Alguém tocando?
— Sim. Mas não era um músico de rua qualquer. Parecia… sei lá. Um lamento bonito.
Sophia limpou as mãos num pano e se aproximou.
— Talvez Paris tenha decidido te dar uma trilha sonora.
Sorri, sentindo o calor da cozinha invadir meus pensamentos.
— Seja lá quem for… tocou dentro de mim.
Ela me estendeu uma colher com molho para provar.
— Então guarda isso. As coisas boas, mesmo quando breves, também são sagradas.
Assenti. E naquele instante, soube:
Alguma coisa em mim tinha mudado.
E não havia mais como voltar.