Capítulo 7

Acordei com o som dos sinos de uma igreja próxima e o cheiro de pão fresco vindo da janela entreaberta.

Durante alguns segundos, não soube onde estava. O teto branco e o abajur torto pareciam cenário de um sonho calmo demais para ser real.

Mas então ouvi o ronronar preguiçoso de Louis, o gato, pulando sobre minhas pernas, e lembrei: Paris. A casa de Sophia. Um lugar longe dele. Longe de tudo que eu costumava chamar de vida.

A claridade atravessava a cortina fina como se o dia dissesse:

“Você ainda está aqui. E isso já é alguma coisa.”

Levantei devagar, ainda com o corpo pesado. O tempo parecia mais lento, como se o relógio tivesse se recusado a correr, respeitando meu luto silencioso.

Na cozinha, havia um bilhete em francês rabiscado por Sophia com uma flecha apontando para um saco de pães quentinhos:

“Coma. Beba água. Não pense demais.”

Ri sozinha. A voz dela parecia ter sido gravada no papel.

Peguei um pedaço de pão e fiquei olhando pela janela. A rua abaixo pulsava em sua rotina indiferente. Uma senhora carregava flores. Um homem limpava a calçada em silêncio. Um grupo de adolescentes passava rindo alto, como se a vida fosse leve.

Ninguém sabia quem eu era.

Ninguém esperava nada de mim.

Era libertador.

Assustador também.

Depois de comer, tomei um banho demorado. Deixei a água quente cair sobre os ombros como se pudesse lavar as últimas marcas invisíveis dele em mim. Vesti um suéter grosso e calcei os tênis velhos que encontrei no fundo da mala. Peguei um caderno vazio da estante de Sophia, e decidi andar um pouco. Sentir a cidade.

As ruas de Paris tinham um ritmo próprio. Um tipo de poesia silenciosa. Os cafés não tinham pressa. As vitrines pareciam mais interessadas em contar histórias do que vender. As pessoas se olhavam mais. Ou talvez eu estivesse enxergando melhor agora.

Caminhei sem destino, rabiscando palavras soltas no caderno:

“Silêncio que não pesa.

Janela com gerânios.

Vento frio, mas honesto.”

Às vezes, parar era mais difícil do que fugir.

Sentei num banco próximo a uma praça com uma fonte pequena e redonda. Vi uma menina desenhando o pai com lápis de cor, a língua para fora e a testa franzida de concentração. E lembrei.

Lembrei do que eu fazia antes dele.

Antes da crítica disfarçada de “opinião sincera”.

Antes das piadas que desmontavam meu entusiasmo.

Eu desenhava. Eu pintava.

Eu sonhava.

Fechei o caderno com força e respirei fundo. Uma lágrima escorreu, mas nem tentei limpar.

Era só mais uma das muitas que ainda viriam. Tudo bem.

Na volta, passei por uma vitrine de tintas e aquarelas. Meus olhos ficaram presos ali, diante dos frascos coloridos e pincéis alinhados como soldados esperando por ordem. Senti um aperto no peito.

Mas não entrei. Ainda não.

Quando cheguei em casa, Sophia estava estirada no sofá, com uma revista na cara e uma música francesa tocando baixinho. A luz dourada da tarde entrava pela janela, banhando tudo com um brilho tranquilo.

— Ei, artista de fuga — disse ela, sem abrir os olhos. — Te deixei pão, água e um Paris inteiro. Usou bem?

— Usei — respondi, jogando o casaco numa cadeira. — Acho que sim.

Ela tirou a revista da cara e me olhou com uma expressão que misturava ternura e cuidado.

— E agora?

Demorei um pouco antes de responder. Olhei para fora, para a cidade que começava a apagar as luzes do dia.

— Agora... agora eu não sei. Mas acho que quero descobrir devagar.

— Ótimo. A gente vai descobrir juntas — ela disse, estendendo a mão para um toque de dedos.

Toquei a mão dela. Sorri.

E pela primeira vez em muito, muito tempo… sorri sem fingir.

Ficamos assim por um tempo. Em silêncio. Até que meu celular vibrou.

Era automático: o coração acelerou. Peguei o aparelho como quem pega um fósforo aceso.

Enzo.

A tela mostrava uma mensagem. Só uma.

“Você foi longe demais, Allegra. Precisamos conversar.”

As palavras pareciam frias, como se não viessem de um homem partido, mas de alguém ainda tentando manter controle.

Apaguei a notificação antes de ler de novo.

Não havia culpa. Só um incômodo antigo tentando se vestir de saudade.

— Tá tudo bem? — Sophia perguntou, percebendo minha expressão.

— Era ele. Enzo.

Ela se endireitou no sofá, os olhos atentos.

— Disse alguma besteira?

— Disse o de sempre. Que eu fui longe demais. Que quer conversar.

Sophia bufou, revirando os olhos.

— Ele sempre quis conversar quando você já tinha se calado inteira por dentro.

Assenti. Uma lágrima ameaçou cair, mas eu segurei.

— Eu não respondi — murmurei.

— Nem deve. Que ele converse com o eco da própria ausência.

Ela estendeu a mão de novo, agora apertando a minha com força.

— Você não deve nada pra ele. Nem uma resposta. Nem o teu silêncio.

Fechei os olhos, sentindo um nó se desfazer por dentro.

E naquele instante, soube:

Era o começo de um novo tipo de coragem.

Mais quieta. Mais firme.

Mais minha.

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