O vestido era justo. Mais do que eu gostaria. Enzo disse que “valorizava minha silhueta” e que os fotógrafos da noite iam adorar. Disse também que o vermelho ficava bem no meu tom de pele, que dava engajamento, que chamava atenção. Eu odiava vermelho.
— É um evento importante, Allegra. Nada pode dar errado — ele disse, ajustando o nó da gravata diante do espelho, como se ensaiasse a própria imagem.
No carro, ele não falou comigo. Só mexia no celular, trocando mensagens com o assessor. Cada notificação parecia ecoar no silêncio entre nós. Enquanto isso, eu tentava controlar a respiração, engolir seco a sensação de que algo estava prestes a quebrar. Talvez eu mesma.
Cada passo dentro do carro, dentro do salão, dentro de mim… era como se a Allegra de verdade estivesse do lado de fora. Sentada num banco de pedra, em alguma viela esquecida de Nápoles. Esperando que eu voltasse.
O salão da Gioia era um universo paralelo. Lustres de cristal refletindo mil luzes, espumante que borbulhava em taças infinitas, garçons que flutuavam como sombras educadas. Influenciadores com sorrisos treinados e roupas que gritavam “olha pra mim”. Era tudo muito — muito brilho, muito som, muita aparência. Muito pouco de verdade.
Enzo se movia ali como um peixe na água. Charmoso, articulado, com aquele riso que ele usava quando queria fechar negócios ou encantar seguidoras. E, como sempre, eu era o acessório de luxo pendurado ao lado dele.
— Fica perto de mim, por favor. Você é parte da imagem — sussurrou, entre os dentes, com um sorriso colado no rosto.
Obedeci.
Fiquei ao lado dele enquanto ele apertava mãos, trocava promessas, falava de projetos. Fiquei ali, calada, sorrindo mecanicamente, como um quadro bonito numa parede branca. Eu me sentia cada vez mais borrada, como uma versão minha em baixa resolução.
Na terceira taça de espumante que recusei, ele se inclinou e disse bem perto do meu ouvido:
— Você tá estranha. Dá pra fingir um pouco melhor?
Eu quis responder. Quis dizer que fingir era tudo o que eu fazia nos últimos meses. Mas engoli a resposta. Engoli como se fosse vidro. Machucando a garganta por dentro.
As horas arrastaram-se como um desfile de máscaras. Em cada clique de câmera, em cada riso forçado, eu me afastava mais de mim. Até que veio o estopim. Pequeno. Quase banal.
Um repórter se aproximou com a câmera em punho e disse animado:
— Podemos fazer uma foto espontânea de amor verdadeiro?
Enzo me puxou pela cintura, colou o rosto no meu e sussurrou:
— Beija logo.
Hesitei. Um segundo. Apenas um segundo. Mas foi suficiente.
O clique não veio.
O fotógrafo recuou, murmurando um “ah, tudo bem…” desconfortável. Enzo, no entanto, manteve o sorriso para os outros — e me fulminou com os olhos.
— Que droga foi essa, Allegra? — disse entre os dentes, sem parar de sorrir para quem passava.
— Eu não sou sua boneca — sussurrei.
Ele não gostou.
— Não? Então o que você tá fazendo aqui? Vestida assim, pendurada no meu braço como se fosse alguma coisa?
A frase me atingiu como um tapa em público. Senti olhares ao redor. Senti as pessoas ouvindo — e fingindo que não ouviram. Porque assim era mais fácil.
Dei dois passos pra trás. Meu coração pulsava no pescoço, nos pulsos, na boca. Pela primeira vez, não abaixei a cabeça.
— Eu não sei mais o que tô fazendo aqui.
Enzo me encarou como se eu tivesse cuspido na reputação dele.
— Vai fazer drama agora? Na frente de todo mundo? Você é ridícula. Sempre foi.
Minhas mãos tremiam. Mas não era medo. Era outra coisa. Algo que eu não sentia fazia tempo.
Fúria. Liberdade.
Virei as costas. Simples assim. Saí do salão. Sem pedir licença, sem olhar pra trás. Nem mesmo pra ver se ele vinha atrás. Eu sabia que não viria.
A noite de Nápoles estava fria. O vento cortava minhas pernas expostas, o salto doía, mas eu não parei. Andei quadras inteiras sem rumo. As lágrimas vieram. Silenciosas. Sem escândalo. Só escorreram.
E no meio daquele choro contido, no meio da cidade que me cercava e ao mesmo tempo me libertava, eu pensei nela.
Sophia Romano.
Morando em Paris.
Minha amiga de verdade. Minha lembrança boa. A única que nunca apagou o que eu era.
Peguei o celular com dedos trêmulos. Respirei fundo. Abri a conversa e digitei:
“Você ainda teria um canto pra mim aí em Paris?”
Esperei com o coração apertado. O tempo parecia dobrar dentro do peito.
A resposta veio em menos de um minuto:
“Sempre. Vem.”
Fiquei olhando para a tela. Uma mensagem tão curta, tão simples, mas que parecia abrir uma porta dentro de mim.
Uma porta trancada há muito tempo.
Voltei para casa sozinha. Enzo ainda não tinha voltado. Ou talvez estivesse evitando a volta. Não me importei. Entrei no apartamento, tirei os sapatos e sentei no chão da sala. Ali mesmo. De vestido, de maquiagem borrada, com o mundo desmoronando dentro de mim.
Fiquei ali por longos minutos.
E então, sem pensar demais, fui até o quarto. Peguei a mala pequena no armário, joguei dentro dela roupas básicas, documentos, o sketchbook antigo que eu achava que tinha perdido. Coloquei o celular para carregar. Troquei de roupa.
E sentei à mesa com o computador aberto.
Busquei passagens. Nápoles – Paris. O mais cedo possível.
Achei. Comprei.
O silêncio da casa era quase reconfortante.
Enzo ainda não tinha voltado.
Talvez ele achasse que eu ia voltar para o meu papel. Que tudo era só uma crise.
Mas, pela primeira vez em muito tempo, o papel rasgou. A história recomeçou.
Eu respirei fundo.
E dormi com a mala pronta ao lado da cama.