— Você está diferente hoje — disse Sophia, com uma colher de iogurte na mão e os olhos semicerrados, como se analisasse uma obra de arte contemporânea.
Olhei para ela, meio rindo, meio sem entender.
— Diferente tipo o quê? Bagunçada? Despenteada?
— Tipo mais... acordada — respondeu, girando a colher entre os dedos. — Com um brilho novo. Acordou com fome de vida?
— Talvez só com fome mesmo — brinquei, pegando minha caneca de café.
Ela arqueou uma sobrancelha, desconfiada, mas não insistiu. Largou o potinho vazio na pia e se encostou na bancada, cruzando os braços, me observando com carinho.
— Saudades de casa?
Parei por um instante. Essa pergunta costumava doer.
— Não sei — respondi, sincera. — Acho que ainda não entendi o que é “casa”, pra ser honesta.
O silêncio que veio depois não foi desconfortável. Era o tipo de silêncio que só existe entre duas pessoas que se conhecem o suficiente para não precisarem preencher o espaço com palavras o tempo todo.
Levei minha caneca até a janela da cozinha. O céu estava limpo, pincelado de nuvens esfiapadas. Lá fora, os telhados parisienses pareciam inclinados propositalmente, como se todos estivessem tentando enxergar o mundo melhor. Roupas penduradas balançavam nas sacadas. Um gato caminhava sobre o parapeito do prédio vizinho, com o mesmo desdém de Louis.
Mas nada daquilo era o que ocupava meu peito.
Era o som.
Aquela música.
Aquele violino.
Desde ontem, ele não me deixava em paz. Como se tivesse ficado preso em alguma parte invisível do meu corpo — talvez no peito, talvez nas pontas dos dedos. Uma melodia sem nome que me lembrava algo que não sabia explicar. Um eco do que eu era antes de tudo desmoronar.
— Ontem, ouvi uma música na rua — comentei, sem pensar muito. — Um violino.
Sophia ergueu os olhos, atenta.
— Estranho tipo feio ou tipo emocionante?
— Tipo… como se alguém tivesse tocado dentro de mim, sabe?
Ela se aproximou, já com aquele ar de quem ia montar teorias mirabolantes.
— Você viu quem era?
— Não. Só ouvi. Quando fui procurar, já tinha parado.
— Uau. Misterioso. Poético. Quase cinematográfico. — Ela piscou. — Será que é um sinal?
Revirei os olhos, mas ri.
— Por favor, não começa com suas teorias de filme indie. Eu mal consigo lembrar quem eu sou e você já quer roteiro de romance francês.
— Desculpa, mas você tem que admitir… Paris, uma artista que parou de pintar, um som misterioso vindo de algum canto da cidade... Isso dá uma bela história.
Suspirei, encostando a testa na vidraça fria.
— O que dá uma bela história nem sempre dá uma vida boa, Sophia.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, mas não tirou os olhos de mim.
— Mas às vezes dá, sim — respondeu, com a voz mais baixa. — Às vezes, tudo o que a vida precisa é da trilha sonora certa pra começar a fazer sentido de novo.
Guardei aquela frase. Porque, vinda dela, tudo sempre parecia mais simples. Mais leve. Menos impossível.
No fim da tarde, saímos para caminhar. O plano era sem planos — do jeito que os melhores dias começam. Sophia queria me mostrar uma feirinha de livros usados perto do Canal Saint-Martin. Disse que os livros ali tinham cheiro de história e poeira boa.
A feira era um caos encantador. Estandes montados sobre caixas de madeira, cobertos de tecidos coloridos. Turistas distraídos, velhinhos charmosos e casais de mãos dadas.
Enquanto ela mergulhava num exemplar antigo de Le Petit Prince, com as bordas amareladas e anotações à lápis, me afastei um pouco. Não estava interessada nos livros. Meus olhos procuravam outra coisa.
Um som.
Uma presença.
O violino.
Mas tudo que ouvi foram os ruídos da cidade. Risadas, conversas em francês, bicicletas passando, o barulho delicado das folhas se arrastando no chão. Era Paris em movimento. Mas não era o que eu procurava.
Ainda assim, havia algo diferente dentro de mim.
Uma espécie de saudade.
Não de Nápoles.
Não dele.
Mas de mim.
Voltamos para casa quando o céu começava a ficar rosado. Sophia tentou me arrastar para um bar com música ao vivo, mas eu disse que preferia ficar. Precisava do silêncio.
Quando ela saiu, me tranquei no quarto com o caderno e uma caneta. Acendi o abajur, me sentei na beira da cama e comecei a desenhar.
Sem pretensão. Sem técnica. Só o que minha memória emocional conseguia traduzir da música.
Linhas onduladas. Um banco de praça. O contorno de um homem invisível. Um violino flutuando sozinho, envolto em sombras.
Não fazia ideia do que aquilo queria dizer. Mas era honesto.
Honesto como o som que tinha me atravessado no meio da rua.
Quando terminei, assinei no canto.
Não por orgulho.
Mas porque, pela primeira vez em muito tempo, eu estava ali.
Presente. Inteira.
Guardei o caderno com cuidado e me deitei.
Por alguns minutos, fiquei olhando para o teto, esperando a insônia chegar. Mas, estranhamente, ela não veio. Me senti cansada de um jeito bom — aquele cansaço que vem quando a alma começa, bem devagar, a se recompor.
Fechei os olhos.
E quando adormeci, juro que ouvi o som do violino de novo.
Baixo, distante, mas vivo.
Como um convite.