O sangue ferve

Ana

Atravessei a rua sem pensar. Passei pela recepcionista como um furacão e fui direto até a mesa.. Ele levantou na hora que me viu. Mas era tarde.

—Aproveitando o jantar, amor?

O olhar dele ficou tenso. O dela? Surpresa total. Mas não disse nada. Ficou muda, com os olhos arregalados.

—Ana, não é o que você tá pensando…

—Ah, não? — soltei uma risada amarga. —Corta esse papo furado, eu vi vocês se beijando!

Silêncio. Ele não respondeu.

E foi aí que eu soube.

—Fala, Mark. Vai mentir aqui, na minha cara? No meio dessa gente?

Ele suspirou. Baixou os ombros, como se o peso da culpa finalmente tivesse caído em cima dele.

—Eu não vou mentir.

Meu corpo inteiro travou. As palavras dele bateram como um tapa.

—Então você tá me traindo. É isso?

A mulher na frente dele ficou pálida. Mexeu na bolsa, meio sem saber pra onde ir.

—Com ela? Com essa aí?

—O nome dela é Letícia — ele disse, calmo, como se isso mudasse alguma coisa.

Eu ri. Um riso vazio, quebrado.

—Ótimo. Agora a traída sabe o nome da amante. Palmas pra você, Mark.

O restaurante inteiro ficou em silêncio. Todo mundo olhando para o espetáculo, mas eu não tava nem aí. Porque, pela primeira vez, eu via tudo com clareza.

—Você podia ter terminado comigo. Podia ter sido homem. Mas preferiu me deixar apodrecer naquela cama.

Ele tentou se aproximar, mas eu recuei.

—Não encosta em mim.

A Letícia se levantou e saiu, apressada. Mark ficou ali, me olhando como se tivesse levado um soco. Mas eu não sentia pena. Nem raiva mais.

Só… vazio.

—Quantas vezes?

Ele hesitou. E isso já era resposta suficiente.

—Você sabe o que é se sentir invisível, Mark? Deitar toda noite ao lado de alguém e sentir que está dormindo com um estranho?

—Ana… eu tava perdido. A gente tava mal há meses. Você também se afastou.

Ah, o clássico. A culpa compartilhada.

—Não se atreva a me culpar — minha voz saiu baixa, afiada. — Eu tentei. Eu me doei. Eu me humilhei. E você virou as costas.

Ele passou a mão no rosto, cansado.

—Não tô tentando justificar. Só… aconteceu.

Essa frase me matou.

—“Só aconteceu.” É assim que você resume trair quem te amava?

Ele não respondeu.

Naquele momento um garçom passou ao meu lado, na sua bandeja uma garrafa de vinho e duas taças, eu peguei a garrafa sem pensar e acertei na cabeça de Mark. A garrafa estourou, vidro e vinho para todo lado. As pessoas do restaurante gritaram.

Mark caiu para o lado com a mão na cabeça, agora o lado esquerdo do seu rosto tinha um corte, o sangue escorreu no rosto dele e na minha mão, acho que um caco de vidro me atingiu mas eu nem percebi.

 Mesmo com os gritos alheios os seguranças do lugar se aproximando eu não escutava nada. Como quando entra água no ouvido e ele parece coberto por uma barreira protetora. 

E ali, com o meu coração em pedaços, eu soube o que tinha que fazer.

Levantei o queixo, sequei o rosto com a palma da mão e falei a única coisa que ainda me restava.

—Acabou.

Os seguranças me puxaram pra fora, o garçom agora ajudava Mark colocando um pano em seu ferimento, que era muito mais superficial do que o ferimento que ele me causou.

Saí do restaurante com as pernas bambas, me soltei dos seguranças e corri para o carro.

Não olhei pra trás. Não queria ver a cara dele. Já bastava o estrago dentro de mim.

Entrei no carro e dirigi. Cheguei ao centro da cidade, sem destino certo. Só queria sumir. Pensar. Respirar.

Senti uma ardência na mão no lugar onde o vidro cortou, ardia, mas essa dor não era tão forte quanto a que o meu coração sentia. Mas era a primeira vez em muito tempo que eu me sentia livre.

Sim, doeu. E ainda ia doer. Mas era como arrancar um dente podre. Melhor encarar a dor de uma vez do que ficar sofrendo em silêncio por mais um ano.

Parei em qualquer lugar e abri o celular e entrei no site de aluguel de casas.

Pensei em voltar para casa da fazenda dos meus pais, mas a ideia de morar lá depois de tudo me sufocava. Eu precisava de espaço. De ar. De um lugar só meu.

Algo acendeu em mim. Um instinto de sobrevivência.

Encontrei uma pequena kitnet no centro. Barato. Simples. Perto da rodoviária.

“Disponível pra entrar hoje.”

Fechei na hora. Sem pensar duas vezes.

Era isso. Eu ia recomeçar.

Sem Mark. Sem mentiras. Sem mais traições.

Só eu… e essa nova versão de mim que nasceu no meio do caos.

Eu parei na em frente ao prédio de kitnets. A fachada descascando, o portão enferrujado… mas, pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.

Peguei a chave com a dona do imóvel ali mesmo, direto na calçada. A mulher me olhou com curiosidade, mas não perguntou nada. Ainda bem. Porque se perguntasse, eu ia desabar.

Subi as escadas com uma mochila e o coração em pedaços.

Quando abri a porta, o cheiro de mofo me deu um tapa. Mas eu entrei assim mesmo.

O lugar era minúsculo. Um sofá de dois lugares, um tapete de crochê com uma televisão de tubo, um colchão no chão, uma pia velha, uma janela sem cortina.

Mas era meu.

Fechei a porta, encostei a cabeça nela e respirei fundo.

Pronto. Agora ninguém ia mais me ignorar. Nem me esconder. Nem me usar.

Liguei o celular, entrei no aplicativo de mensagens e escrevi:

—Nunca mais me procure.

Bloqueei o número dele.

O silêncio que veio depois foi a primeira paz que senti em dias.

Caminhei até a janela. A cidade lá fora seguia no caos de sempre. Gente correndo, buzina, calor.

Mas dentro de mim… alguma coisa tava diferente.

A Ana que rastejava por amor morreu naquele restaurante.

E a que nasceu agora?

Eu ainda não sabia quem.

Mas iria descobrir.

—Mas antes, é melhor dar uma olhada nesse corte. -Falei pra mim mesma. desce as escadas e fui até a farmacia mais proxima. Agora com a mão devidamente enfaixada, eu estava pronta…pra ir ao mercado comprar comida e algo que tirasse o cheiro de mofo.

Mesmo me sentindo derrotada, humilhada, dolorida e um pouco suja, algo me dizia que eu ficaria bem. 

Voltei para o apartamento com um sanduíche e uma lata de refrigerante, algumas outras comidas para o café da manhã, um produto para tirar mofo e nem um plano.

Senti um leve medo. Como seria o futuro, sozinha, fora do campo. 

O que a vida me reserva agora.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App