Ana
A primeira noite sozinha foi um caos. O colchão era duro, o mofo ainda reinava, e minha mão latejava por causa do corte. Mas nada disso se comparava ao silêncio. Um silêncio tão grande que parecia que o mundo inteiro tinha me esquecido.
Acordei cedo, cansada, faminta e com o estômago roncando como um motor velho. Decidi que ia andar pela cidade. Me distrair. Respirar ar diferente. Só não esperava cruzar com um terremoto de terno e perfume caro logo no meu segundo dia de luto.
Entrei num café qualquer, desses de esquina, com cheiro de pão na chapa e café queimado. Sentei perto da janela, ainda meio anestesiada, e pedi um misto quente. Quando fui tirar o celular do bolso, ele caiu no chão com tudo.
— Cuidado, moça. Isso aí parece sua vida: em pedaços.
Levantei o rosto com tudo, pronta pra xingar. Mas... travei.
Um homem. Alto. Impecável. De terno escuro. Olhos de aço. E um sorriso cínico que me desmontou mais que a traição do Mark.
Ele se abaixou, pegou meu celular, e me entregou com a calma de quem sabe o estrago que causa.
— Você devia cuidar melhor das duas coisas.
Fiquei sem palavras. Coisa rara. Normalmente eu teria rebatido, soltado alguma resposta ácida, mas aquele homem parecia... imune ao meu sarcasmo.
— É sério que você tá me comparando com um telefone quebrado? — perguntei, tentando parecer firme, mesmo com o coração dando pulos.
Ele sorriu, sentou na mesa ao lado — sem convite — e apoiou os braços no encosto da cadeira, confortável demais pro meu gosto.
— Eu só disse o que vi. Cabelos bagunçados, curativo malfeito, olhar de quem acabou de sair de um furacão. Acertei?
— Você não me conhece.
— Ainda não.
O garçom veio anotar o pedido dele, e o tal do arrogante pediu café puro, sem açúcar. Psicopata, com certeza.
— Alexander. Mas pode me chamar de Lex.
Fingi desinteresse, olhei pro lado. Mas ele ria como se já tivesse me lido inteira.
— E você, mocinha do sanduíche... o que faz com tanta dor estampada na cara logo cedo?
Dei um gole no meu café frio.
— Tentando recomeçar.
Ele me encarou, sério agora.
— Então talvez você tenha vindo parar exatamente onde precisava.
A forma como ele disse aquilo… me arrepiou inteira. Não era só pela voz baixa, nem pelo jeito intenso que ele me olhava. Era como se aquele homem me conhecesse. Como se tivesse enxergado a ferida que eu nem sabia que estava mostrando.
Mas quem diabos é esse homem?
— Você sempre aborda mulheres tristes no café da manhã ou eu tive esse privilégio especial? — falei, tentando aliviar o clima.
Ele riu de novo. Um riso grave, lento. Provocante. Seus olhos passaram por mim de cima a baixo, me deixando toda arrepiada.
— Só quando elas chamam atenção demais pra passar batidas.
Cruzei os braços, tentando não parecer desconcertada pelo seu ar sedutor.
— Bom, pode seguir com seu café. Não tô a fim de flertar com um estranho hoje.-Falei tentando parecer indiferente, mesmo sentindo meu coração bater mais forte a cada palavra que saia da boca dele.
Ele se inclinou, como se fosse me contar um segredo:
— Relaxa. Eu também não sou do tipo que flerta. Eu negocio.
O calor subiu pelo meu pescoço. Que tipo de homem fala assim? Que tipo de mulher aceita essas provocações? A resposta era simples: uma mulher cansada, curiosa… e carente o suficiente pra se sentir viva com a meia provocação de um estranho muito atraente.
Ele me olhou mais uma vez, com olhos que pareciam saber demais.
— Vai querer um conselho, Ana?
— Como você sabe meu nome?
Ele apenas piscou.
— Eu escuto mais do que pareço.
Antes que eu pudesse responder, meu celular apitou. Mensagem da proprietária. —Contrato aprovado. Agora a kitnet é oficialmente sua.
Olhei pra tela, engoli seco. Aquilo era real. Eu tava mesmo começando do zero. E agora tinha um endereço que não era de Mark, nem dos meus pais. Era meu.
Lex notou. Claro que notou.
— Recebeu uma boa notícia?
Assenti, meio tonta.
— Talvez a primeira em muito tempo.
Ele se levantou. Tirou uma nota da carteira, deixou sobre a mesa. E antes de sair, largou mais uma frase que me desmontou:
— Não desperdiça esse recomeço. A maioria não tem coragem de quebrar tudo pra começar do zero.
Fiquei ali, parada, vendo ele sumir pela porta como se tivesse sido só um delírio meu.
Mas não foi. Um homem como ele existia, enigmático, misterioso, lindo, com um sorriso traiçoeiro que me deixava fascinada.
Segurei o celular com força, o coração batendo mais rápido do que deveria. Eu não sabia quem era aquele homem.
Mas ele sabia meu nome, meu estado de espírito… e parecia mais lúcido que todo mundo ao meu redor.
Lex.
Aquela presença fria e atraente ao mesmo tempo. Afinal quem é ele?-pensei
Terminei o café que já estava gelado junto com o misto e levantei da mesa ainda desnorteada…
–Como ele sabia meu nome?-Falei em voz alta pra mim.
Respirei fundo e tentei seguir com a minha vida, as chances de voltar a ver esse homem eram bem baixas, provavelmente essa seria uma memória que eu guardaria, uma conversa com um homem estranho e atraente que me deixou confortável e estranha ao mesmo tempo.
Sai do café mas minha mente não conseguia focar, a conversa com Lex se repetia, cada detalhe e cada vez que pensava nele mas misterioso ele parecia.
—Esquece isso, Ana!-repeti pra mim tentando controlar a minha mente que insistia em pensar em como ele parecia me conhecer, em como ele sabia meu nome e como era elegante e misterioso.
Dez minutos se passaram e eu já estava criando teorias sobre ele, tentando me distrair ao máximo da dor que Mark me causou.
Ele pode ser um viajante do tempo, que só apareceu para me motivar naquele momento…
Ou talvez um vampiro com mais de duzentos anos procurando uma esposa imortal. Duzentos é muito velho pra mim…mas eu seria imortal então não faria diferença…-Divaguei enquanto caminhava pelas ruas próximas ao café.
Parei de andar quando me deparei com uma biblioteca de dois andares, entrei na mesma hora esperando achar algum livro que me ajudasse a encontrar um tutorial de como viver sozinha ou só algo sobre vampiros.
Andei pelos corredores até que achei uma sessão de livros de ficção. Uma capa vermelha com letras pretas chamou minha atenção. O beijo do vampiro.
Eu abri e comecei a folhear.
—”O beijo do vampiro” esse é o tipo de literatura que te interessa Ana?
Olhei pro lado assustada.
Meu coração quase saiu pela boca.
Lex estava parado ao meu lado com um livro em mãos e o mesmo sorriso intenso e misterioso do café.