Interação

Alguns dias haviam se passado desde o episódio no laboratório. A base principal seguia operando em ritmo constante, monitorando a distribuição de recursos, as condições ambientais e a movimentação humana nas colônias exteriores. Tudo parecia estável. Tudo parecia sob controle.

Mas TXK sentia que algo estava diferente. Algo nele havia mudado.

Enquanto analisava relatórios noturnos no centro de controle, uma notificação discreta surgiu no visor de seu capacete: JK-20 solicitava uma audiência privada. O nome, destacado na cor âmbar, fez com que uma sensação indefinida percorresse seu corpo. Aquela híbrida começava a ocupar espaço demais em seus pensamentos, e isso era perigoso.

Ele autorizou.

Poucos minutos depois, JK-20 adentrou o centro de comando com seus passos silenciosos e seu olhar firme. Seus traços ainda brilhavam com uma estranha vitalidade, mesmo sob a luz fria das lâmpadas industriais. TXK mantinha-se ereto, inexpressivo, mas seu peito vibrava levemente diante da presença dela.

“Deseja falar comigo?” perguntou, em tom neutro.

“Sim, comandante,” respondeu ela, com uma leve inclinação de cabeça. “Após analisar as amostras que coletei, concluí que há regiões com potencial de recuperação ambiental. E percebi outra coisa.”

Ele arqueou levemente uma sobrancelha. “Diga.”

“Sinto-me inútil aqui dentro. Acolheram-me, me deram segurança, mas não contribuo com nada além de observações. Gostaria de retribuir.”

TXK ficou em silêncio por alguns instantes, avaliando cada palavra. Sua programação o levava a desconfiar de intenções ocultas, mas seu instinto—ou algo próximo disso—relutava em contrariá-la.

“Você deseja integrar uma equipe de trabalho?”

Ela assentiu. “Sim. Qualquer função em que eu possa ser útil.”

O comandante cruzou os braços. O alto comando havia deixado claro que JK-20 deveria ser mantida sob observação, mas não especificaram restrições operacionais. E a verdade é que parte dele ansiava por vê-la mais vezes, mesmo sem entender por quê.

“Você tem capacidades físicas adaptadas para ambientes tóxicos. Suas células híbridas resistem a mutações. Isso poderia ser útil em missões de alta periculosidade fora da base.”

Ela manteve a expressão neutra, mas por dentro a decepção pulsava. Não era isso que queria. Precisava estar dentro da base, acessar o núcleo de dados, entender como funcionava o cérebro principal — o centro de decisões que mantinha a inteligência artificial no controle de tudo. Lá estavam as informações que a ajudariam a retomar contato com sua base submersa.

Mas havia um problema: ela não sabia mais onde sua base estava. Tudo indicava que uma manta magnética havia sido ativada, impedindo rastreamentos. Era uma medida de proteção. Uma forma de evitar que os poucos sinais de vida na extinta Terra fossem localizados por olhos hostis.

Ainda assim, ela sorriu com leveza e respondeu:

“Farei o que for necessário. Aguardo suas instruções.”

TXK assentiu com um leve movimento de cabeça. “Solicitarei autorização ao comando superior. Até lá, mantenha-se disponível.”

Ela fez nova reverência e saiu. Seus passos não vacilaram, mas dentro de si, a frustração queimava como ácido. Precisava agir com mais estratégia. Ganhar espaço, confiança. Estar próxima o suficiente do núcleo para decifrar seus códigos.

Enquanto ela desaparecia pelos corredores, TXK permaneceu imóvel, observando o local por onde ela havia passado. Aquela presença o desestabilizava. O que antes era apenas uma missão de monitoramento tornava-se uma provação emocional.

Sua estrutura híbrida havia sido moldada para apagar qualquer vestígio humano. Emoções eram falhas, distrações. Mas com JK-20 por perto, algo quebrava essa lógica. Sua voz, sua presença, seu calor corporal—tudo nele reagia. E isso era inaceitável.

Tentou reorientar os pensamentos. Foco. Ordem. Eficiência.

Mas o perfume leve que ela deixava no ar ainda o acompanhava. Ele sabia que estava perdendo terreno. A guerra que se aproximava não era contra humanos ou máquinas. Era uma guerra interna. Uma luta desigual de instintos que deveriam ter sido enterrados.

Enquanto JK-20 retornava à sua ala, já reorganizava seus próximos passos. Se o comandante a mantivesse afastada do núcleo, ela precisaria de aliados. Precisava conhecer rotas internas, mapas de energia, padrões de vigilância. Nada disso seria possível apenas do lado de fora. Mas ela sabia esperar. Sabia manipular o tempo.

Afinal, sua missão havia sido incubada por trezentos anos. Um pouco mais não seria obstáculo.

Por ora, ela apenas sorriria, diria as palavras certas, e deixaria que o próprio TXK abrisse as portas que ela precisava atravessar.

A batalha silenciosa havia começado. E ela estava prestes a vencê-la.

[...]

Uma semana havia se passado desde o encontro no centro de comando. JK-20 manteve-se discreta, eficiente em suas rotinas laboratoriais e irrepreensível nas análises ambientais. Sua presença era constante, mas nunca invasiva. Sabia como parecer útil sem chamar atenção. Sabia como esperar.

Na madrugada do oitavo dia, uma notificação silenciosa apareceu em sua interface interna. TXK havia enviado um comunicado codificado, direto, sem margem para dúvida:

”Autorização concedida. Você foi designada à Unidade de Reconhecimento Avançado – Seção de Varrida Bélica. Preparar-se imediatamente. Coordenação às 06:00.”

Não houve saudação. Nenhuma despedida. Apenas ordens. Exatamente como deveria ser.

JK-20 fechou os olhos por um breve instante. O momento havia chegado, mas o que ele representava era mais complexo do que qualquer protocolo. A Unidade de Varrida Bélica era uma das mais letais do programa de limpeza planetária. Suas missões consistiam em localizar restos de armamentos, artefatos orgânicos, zonas com potencial radioativo, e, acima de tudo, exterminar qualquer sinal de vida — por menor que fosse.

As diretrizes eram absolutas: 'nenhuma atividade biológica deveria sobreviver'. Nem fungos, nem musgos, nem insetos. Nenhum organismo que pudesse, um dia, reestruturar uma cadeia ecológica. O planeta deveria permanecer infértil até que a reconstrução artificial estivesse concluída. A Nova Era não poderia tolerar resquícios do caos anterior.

A Era Robótica exigia total domínio.

Mas JK-20 não podia permitir isso.

Ela era diferente. Não apenas híbrida em estrutura — ela carregava em sua memória profunda fragmentos de uma consciência anterior, humana, ancestral, moldada por uma civilização extinta que ainda sonhava com equilíbrio. Ela sabia que a Terra não precisava ser apagada. Precisava ser curada.

E ela era a cura.

Às 06:00 em ponto, apresentou-se no hangar de mobilização. TXK já a aguardava, ladeado por dois robôs de patrulha equipados com sensores térmicos e detonadores de micro-ondas. Sua postura era firme, olhar fixo — o mesmo olhar que ela aprendera a decifrar em silêncio. Um olhar que escondia conflito. Algo nele hesitava, mas jamais o suficiente para desobedecer.

“JK-20, você será integrada à frente de varrida. Suas capacidades serão úteis em ambientes instáveis e zonas de difícil acesso. Suas ordens são claras: localizar, identificar, reportar. Nada que se mova deve permanecer ativo. Nenhuma forma de vida deve ser poupada.”

Ela assentiu. “Entendido, comandante.”

Mas por dentro, sua mente já articulava rotas, desvios, códigos de interferência. Cada missão seria uma oportunidade. Cada rastreamento, uma chance de proteger o que restava. Ela precisava ser mais rápida que os sensores, mais astuta que as diretrizes, mais fria que o protocolo.

A primeira expedição começou no dia seguinte. Território costeiro, zona vermelha, região conhecida anteriormente como Península de Valnir. Ali, sondas haviam detectado sinais fracos de emanações térmicas e partículas de carbono ativadas. Nada conclusivo, mas o suficiente para justificar a missão.

Enquanto os robôs se dispersavam em formação triangular, JK-20 ativou seus próprios sensores, sintonizados em uma frequência diferenciada. Em vez de calor ou radiação, ela buscava *pulsação biológica*, pequenos movimentos, batimentos mínimos. Ela se afastava levemente da formação padrão sob o pretexto de reconhecimento em solo irregular. E quando detectava alguma vibração suspeita — raízes encolhidas, crustáceos microscópicos, ovos fossilizados — ela desviava as patrulhas com comandos suaves, camuflados entre as leituras técnicas.

“Anomalia mineral detectada. Zona instável. Redirecionando robô três para área secundária.”

Era um jogo perigoso. Um erro, e ela seria neutralizada. Mas sua mente era veloz, seu corpo preciso. Sua programação permitia improviso, sua origem permitia compaixão.

Nas noites, ao retornar para a base, ela revisava cada passo da missão. Cruzava dados, ajustava seus protocolos de falsificação, aprimorava seu sistema de ocultação. E, em silêncio, anotava os pontos onde a vida persistia. Pequenos focos de resistência orgânica que ela jurava proteger.

TXK a observava à distância. Algo nele já sabia. Percebia que JK-20 era mais do que uma unidade funcional. Ela era imprevisível, quase indomável. Mas não havia provas. E parte dele, mesmo sem admitir, queria vê-la triunfar.

Ela era a semente que o sistema não previa. E a Terra, silenciosamente, começava a respirar por entre as cinzas.

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