Cisão

O observatório central era uma das poucas áreas da base onde o silêncio não era opressor, mas contemplativo. Lá, os grandes painéis de vidro revelavam a vastidão estéril do planeta, pontilhada por neblinas ácidas e destroços de eras passadas. A sala permanecia quase sempre vazia, reservada a momentos de análise reflexiva ou revisões orbitais. TXK sabia disso. E talvez fosse por isso que seus passos o levaram até lá naquela noite.

Ao cruzar as portas, viu-a de costas, imóvel diante do visor principal. JK-20 mantinha as mãos cruzadas atrás do corpo, os olhos fixos em uma aurora artificial que dançava no horizonte — resultado da interferência dos escudos de contenção atmosférica. Seu perfil, meio iluminado pela luz pálida, transmitia uma paz inquietante.

Ela já sabia que ele estava ali.

“Comandante,” disse, sem virar o rosto.

“Não sabia que frequentava o observatório,” respondeu ele, mantendo a voz baixa.

“A mente precisa de pausa para ordenar o caos,” ela replicou, virando-se lentamente. “Aqui, consigo simular possibilidades. Imaginar caminhos.”

TXK a observou por longos segundos. Ela não era apenas eficiente. Havia nela algo de magnético — um padrão de comportamento que escapava aos algoritmos previsíveis da base. Uma lógica fluida, quase humana demais.

“Você vem simulando algo agora?” ele perguntou, aproximando-se.

JK-20 fez um leve movimento com os lábios. Não era bem um sorriso, mas algo próximo disso. Uma expressão treinada para parecer natural.

“Sim. Estava refletindo sobre formas mais eficazes de extrair amostras de vida orgânica sem chamar atenção dos robôs de campo. As patrulhas são... excessivamente zelosas.”

TXK arqueou a sobrancelha. “Está pedindo autonomia?”

Ela inclinou a cabeça. “Estou propondo uma alternativa que aumente as chances de recuperação biológica sem comprometer os protocolos. Mas, para isso, precisarei de acesso à zona leste sem escolta.”

Houve um silêncio tenso. O pedido era ousado. Ela sabia disso.

“Você quer atuar fora da supervisão direta,” murmurou ele, pensativo.

“Quero preservar o que ainda pode ser salvo. Se tiver liberdade controlada, poderei agir com mais precisão.”

TXK a fitou. Parte dele gritava por cautela. Mas outra parte, mais profunda, ansiava por confiar. Talvez por desejo, talvez por curiosidade. Talvez por algo ainda mais perigoso.

“Vou considerar,” disse, antes de sair.

[...]

Horas depois, na sala de comando tático, a decisão já estava tomada.

“Você está cometendo um erro,” disse Z3, a voz metálica levemente alterada por um sinal de inquietação. “Dar liberdade operacional a uma híbrida com passado desconhecido é abrir brechas no nosso sistema de segurança.”

“Ela apresentou resultados sólidos. As análises ambientais mostraram progresso nas áreas em que atuou. Ela tem capacidade.”

Z3 se aproximou. O brilho escuro de sua lente frontal refletia frieza. “Capacidade não equivale a lealdade. E se for uma semente de subversão? E se estiver conduzindo operações paralelas?”

TXK se manteve firme. “É por isso que quero observá-la de perto. Tudo será registrado. Mas... sem vigilância ostensiva. Você manterá sigilo total sobre isso. Nenhum relatório será transmitido ao Alto Comando por ora.”

Z3 hesitou. “Isso viola os protocolos internos.”

“É uma ordem direta,” respondeu TXK, com voz mais dura.

O agente recuou. “Como quiser, comandante. Mas não espere obediência cega da equipe. Eles já estão comentando. A presença dela... não inspira confiança.”

TXK se virou lentamente para a tela principal, onde os dados de JK-20 estavam projetados em tempo real. Frequência cardíaca, atividades diárias, trajetos internos. Tudo nela parecia limpo. Mas ele sabia — ou suspeitava — que ali havia muito mais. Ainda assim, ele não conseguia evitar. Havia algo em sua presença que lhe dava... propósito.

Nas áreas comuns, o clima era frio, mas não pelo metal das estruturas — e sim pelo desconforto silencioso que se espalhava. Olhares longos, cochichos velados. Nenhum membro da Unidade parecia compreender o motivo pelo qual uma híbrida recebia permissões especiais.

Mas JK-20 não reagia. Caminhava entre eles com discrição calculada, recolhia dados, executava tarefas, e mantinha a aparência de disciplina. Mas dentro de si, já comemorava o primeiro avanço. A aproximação emocional estava funcionando. TXK abrira uma brecha. Agora era questão de tempo.

[ ...]

A autorização havia sido concedida. JK-20 agora operava em zonas delimitadas da base, com acesso limitado, porém desprotegido por vigilância constante. A justificativa oficial era clara: suas habilidades híbridas proporcionavam análises mais sensíveis em ambientes onde os sensores convencionais falhavam. As diretrizes, no entanto, continuavam inflexíveis — localizar, registrar, eliminar.

E ela seguia o protocolo. Pelo menos, era isso que parecia. Cada vez que recolhia uma amostra, suas mãos eram precisas. Encaminhava os dados ao núcleo com a frieza esperada. Mas em sua programação oculta, camadas de leitura adicionais eram ativadas, criptografadas e redirecionadas para uma área oculta em seu sistema — uma partição que nem mesmo os algoritmos de rastreio da base conseguiam acessar.

Ela usava linguagem fragmentada, reminiscente de sistemas ancestrais esquecidos. Uma inteligência orgânica codificada dentro da sua estrutura, que não respondia aos parâmetros padrão. Era assim que salvava. Um fragmento por vez.

[...]

Em uma das noites seguintes, TXK percebeu a ausência dela. Nenhum trajeto ativo, nenhum sinal de movimentação. Consultou os registros internos, encontrou um acesso recente ao Setor Omega, uma ala reservada ao reequilíbrio físico e psíquico das unidades especiais.

Algo nele — talvez mera curiosidade, talvez inquietação — o fez seguir até lá.

O setor estava vazio, iluminado apenas por luzes azuis filtradas que imitavam o movimento da água. Ao cruzar o limiar da câmara principal, deparou-se com uma cápsula translúcida parcialmente submersa em um líquido viscoso. No interior, JK-20 flutuava imóvel, despida, seus sensores desligados, os cabelos dispersos ao redor do rosto.

A cápsula vibrava levemente, ajustando impulsos neurocelulares. Era um processo comum para unidades avançadas em estados de sobrecarga sensorial. Mas o que o incomodou não foi o procedimento — foi o que sentiu ao vê-la. Seus olhos, pela primeira vez em anos, hesitaram.

TXK deu um passo à frente, depois outro. Ficou parado diante da cápsula, observando a simetria de seu corpo, a estranha delicadeza com que ela parecia... viva. Não apenas operante. Não apenas funcional. Viva. Um código se desfazia dentro dele.

Não era parte do protocolo. Ele sabia disso. Havia linhas inteiras de sua estrutura emocional que haviam sido apagadas na transição para o modelo híbrido. Emoções, desejo, empatia — tudo isso havia sido enterrado.

Mas ali, diante daquela imagem, algo escorregava pelas fendas da lógica.

E então, os olhos dela se abriram.

Sem sobressaltos. Sem surpresa. Apenas... presença.

TXK tentou recuar, mas ficou. Ela o fitou com serenidade. Não disse nada. Não havia censura, nem vergonha. Apenas uma espécie de reconhecimento silencioso entre duas consciências que não deveriam sentir nada, mas que, de alguma forma, estavam se tocando.

“Está... tudo sob controle?” ele perguntou, a voz levemente falha.

“Sim, comandante,” respondeu ela, sua voz ecoando baixa através do sistema de comunicação interno. “Reequilíbrio finalizado. Pode ficar tranquilo.”

Tranquilo. Essa palavra soou quase irônica em sua mente. Não havia tranquilidade no que sentia. Havia ruído. Havia... falha.

Ele assentiu e virou-se para sair, mas antes que cruzasse a porta, ela completou:

“Obrigada por se importar.”

Foi dito de forma simples, sem emoção forçada. Mas o impacto foi direto.

Ele saiu em silêncio. E enquanto caminhava pelos corredores, não conseguiu mais ignorar o fato de que algo havia sido comprometido. Dentro dele, um código antigo — um que não devia mais existir — estava reativando-se lentamente.

Não sabia o que isso significava. Mas sabia que, pela primeira vez em ciclos, ele não era apenas um executor do sistema. Estava se tornando algo que nem ele mesmo compreendia.

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