O Fogo que Não Apaga (Parte 1)

Felipe limpou o sangue dos nós dos dedos com um pano velho. O homem amarrado à cadeira já não gritava; apenas gemia, a cabeça pendendo para o lado, o rosto inchado. O galpão cheirava a ferrugem, gasolina e medo.

Felipe aproximou-se de novo.

— Última chance, rapaz. — disse entre os dentes. — Onde estão os diamantes que sumiram do carregamento do porto?

O homem cuspiu sangue no chão.

— Eu já disse… não sei de nada… — gritou, mas a voz saiu baixa, não tinha mais forças.

Felipe ergueu o punho. O soco acertou a costela com um estalo seco. O corpo do traidor arqueou, preso pelas cordas. Ele pensou que o homem morreria antes de falar, precisava controlar sua força.

George Demirkan observava tudo de braços cruzados, encostado na parede. O patriarca, aos 62 anos, ainda assustava mais com o olhar do que qualquer arma.

O celular de Felipe vibrou no bolso. Ele fez menção de pegar, mas George levantou a mão.

— Continua. Não há nada mais importante agora.

Felipe hesitou meio segundo, depois obedeceu. Outro soco. Outro gemido abafado. O celular vibrou de novo. George pegou o aparelho da mão do filho, olhou a tela — “Escola Infantil” — e apertou o botão vermelho.

— Negócio primeiro. Filho depois.

— Mas pai, e se?

— E se o que? Ele deve querer gastar mais na cantina, ou esqueceu um lápis e quer que você vá levar. Tem que ser mais enérgico com ele. Não pode fazer todos os caprichos do meu neto.

Felipe engoliu a raiva. Sabia que o pai tinha razão: naquele mundo, um segundo de distração custava vidas. Mas o medo apertou seu peito mesmo assim. Caio era a única coisa limpa que restava nele. Se algum dia a sujeira da família respingasse no menino… ele nunca se perdoaria.

Respirou fundo e se voltou para o homem ou o que sobrou à sua frente.

— Onde estávamos?

---------

A três quilômetros dali, na escola infantil de luxuosa no Bairro nobre de Istambul o alarme de incêndio soou estridente.

Caio ergueu a cabeça da mesinha onde desenhava um barco. A professora gritou:

— Fila! Todo mundo para a saída! — Ela estava em pânico, mas não podia demonstrar, tinha sido treinada para não errar nesse momento.

As crianças correram em pânico organizado. Caio correu também, mas no meio do corredor lembrou-se. O peixinho dourado. O mascote da turma. Ainda dentro do aquário na sala.

Sem pensar duas vezes, virou-se e correu de volta. A fumaça já tomava o corredor. Ele tossiu, os olhos ardendo. Entrou na sala, pegou o aquário com as duas mãos.

— Eu salvo você, Peixinho… — disse para o animalzinho e abraçou o aquário.

A fumaça engrossou. O ar queimou a garganta. Caio cambaleou, tentou achar a porta, mas tudo ficou preto. O aquário escorregou das mãos e quebrou no chão. Ele caiu ao lado dos cacos. O peixe pulou, buscou também ar até que parou, ficaram ali os dois imóveis.

Minutos depois, os bombeiros controlaram as chamas. Os paramédicos entraram. Alguns atendiam as crianças ali fora e outros falavam com os professores.

— Caio! Caio! — a professora gritou. — Por Deus, Caio! — Tossiu e levou a mão ao peito.

— Senhora professora, quem é Caio? — Ayla perguntou.

— Meu aluno, falta um aluno, ele estava no fim da fila, mas... — A professora engoliu seco.

Ayla correu com a equipe, máscara de oxigênio na mão, precisava achá-lo, precisava chegar a tempo. Quando viu o corpinho pequeno no chão, o coração dela parou por um segundo.

— Aqui tem uma criança! — Um arrepio subiu por sua espinha. 

Ela ajoelhou-se, verificou pulso, vias aéreas. O menino respirava fraco, rosto sujo de fuligem, cílios longos tremendo. Algo dentro dela doeu fundo, como se reconhecesse aquela dor antiga. Seu peito estava tão apertado que mal podia respirar.

— Eu levo ele — disse, sem esperar ordem do chefe de equipe.

Pegou o pequeno nos braços, seu colega segurando a máscara no rosto do menino. Cada segundo era precioso.

Na ambulância, Ayla não largou a mãozinha dele nem um segundo. No hospital infantil, ficou ao lado da maca, enquanto os médicos examinavam. Quando Caio abriu os olhos, assustado, pronto para chorar, viu primeiro pessoas de máscaras, várias máscaras brancas, uma luz forte sobre sua cabeça e o teto branco. Ela agiu por instinto:

— Ei, campeão… está tudo bem. Eu estou aqui. — Ayla segurou a mão do menino.

Os olhos dele se fixaram nela. Apertou a mão de Ayla com força, a força infantil se agarrando a vida.

— Eu quero o meu pai — murmurou com a voz embargada. Ayla sentiu de novo aquele aperto no peito.

Olhou em volta como se encontrasse em algum canto a solução. Lembrou-se de quando era crianças, aquilo que a acalmava nas noites de pesadelos.

— E... se eu cantar para você? Quando eu sentia medo, minha mãe cantava uma música que espantava todo mal.

Ele piscou confuso, será que isso era possível?

Começou a cantarolar baixinho uma canção de ninar que a mãe cantava para ela. A voz suave, calma, fez o choro morrer na garganta do menino. Ele apertou os dedinhos nos dela mais ainda.

Ayla pensou que era isso que faria se seu filho tivesse sobrevivido

— Você é bonita — sussurrou Caio, ainda rouco da fumaça. Ayla sorriu com os olhos marejados.

— E você é muito corajoso. Salvou o peixinho, né?

Ele assentiu, orgulhoso. Do lado de fora a professora, nervosa, tentava ligar para o pai pela décima vez. Sem sucesso.

Ayla foi até a porta e a professora apenas negou com a cabeça. Voltou para perto do pequeno. Se o pai não estava ali, era seria sua companhia.

— Que tal comer? Tem coisa gostosa nesse hospital — ela disse e sorriu para ele. Caio pensou que aquele sorriso deveria ser para ele todos os dias.

Ayla alimentou Caio com o jantar do hospital. Descobriu, por acaso, que ele torcia o nariz para morango exatamente como… bem, como ela fazia na infância e outrora esqueça tamanha a dor do que já perdeu. A comida favorita dele: köfte com purê de batata. Igualzinha à dela.

— Por que você não gosta de morango? — ela perguntou limpando a boca dele com um guardanapo.

— Eu não posso, sou alérgico...

— Sério? Mesmo? — Ayla ficou sem jeitos, quantas coincidências ela teria com aquele garotinho.

Caio olhou-a sério. Um plano se desenhando em sua cabecinha. Normalmente, eram esses os planos que faziam correr qualquer babá.

— Meu papai é solteiro. Você pode casar com ele. Eu deixo...

Ayla riu, o coração apertado de um jeito doce e triste ao mesmo tempo.

— Vamos ver se seu pai concorda com isso primeiro, tá bom?

Caio sorriu. Será que finalmente tinha encontrado uma moça boa o suficiente para ser sua mãe?

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App