Mundo de ficçãoIniciar sessãoQUATRO ANOS DEPOIS
Ayla Sanli abriu a gaveta do criado-mudo com cuidado, como fazia em noites difíceis, quando o silêncio do apartamento parecia pesado demais. Dentro de uma caixa de madeira simples, guardada como um tesouro doloroso, estavam as lembranças que ela não conseguia jogar fora: fotos da ultrassonografia, uma pulseirinha minúscula do hospital, e algumas roupinhas de bebê que ela comprou com tanto amor durante a gestação.
Ela pegou uma das fotos, os dedos traçando o contorno da imagem em preto e branco. Um bebê perfeito. Seu bebê. A gravidez foi tranquila, sem complicações maiores. Ela se cuidou com dedicação, mesmo sozinha, mesmo depois de ser expulsa daquele prédio luxuoso por George Demirkan. No parto, tudo desmoronou: desmaiou de exaustão e hemorragia, e ao acordar, o médico disse com pesar que o menino nasceu sem vida. Não houve nem tempo para segurá-lo nos braços.
As lágrimas vieram silenciosas, como sempre. Ayla enxugou o rosto com as costas da mão. Aos 28 anos, era uma paramédica experiente, respeitada na equipe. Salvou dezenas de vidas nas ruas de Istambul. Mas a dela ainda carregava aquela ferida aberta.
Não era para ser, pensou pela milésima vez. Foi melhor assim. Não contou nada a Felipe. Seria só mais sofrimento pra ele. Uma noite... só uma noite. Ele nem deve lembrar de mim.
Guardou a caixa de volta, fechou a gaveta e se levantou. Vestiu o uniforme — calça azul-escura, camisa polo com o emblema da emergência.
Sua mãe também não vivera mais. O coração frágil parou de bater fazia dois anos. O que tinha Ayla então? Sonhos, lembranças e muita dor.
Mesmo assim erguia a cabeça e seguia, ia todos os dias para o lugar de seu sustento. Colocava um sorriso falso no rosto e se alegrava de verdade quando conseguia salvar mais uma vida.
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Do outro lado da cidade, em um galpão abandonado, o ar cheirava a sangue e medo.
Felipe Demirkan, aos 33 anos, estava de pé sobre o corpo de um homem que outrora foi um parceiro de negócios. O traidor jazia no chão frio de concreto, o rosto inchado de surras, o peito arfando sob o peso do pé de Felipe. Ele segurava uma pistola Glock com silenciador, o cano pressionado contra a testa do homem.
— Você achou mesmo que podia roubar da família Demirkan e sair vivo? — A voz de Felipe era baixa, fria, sem emoção. — Joias falsas no lugar das verdadeiras. Milhares de dólares sumidos. Meu pai confiava em você.
O homem gaguejou, sangue escorrendo do canto da boca.
— Felipe... por favor... eu tenho família...
— Eu também — respondeu Felipe, sem piscar.
O tiro foi abafado. Um som seco, final. O corpo parou de se mexer.
Felipe guardou a arma no coldre sob o paletó, limpou o sapato no chão como se nada tivesse acontecido e saiu. Seus homens cuidariam do resto. No carro blindado, a caminho de casa, ele respirou fundo. Aquela era a parte que odiava, mas que fazia parte do legado. George Demirkan, o pai, ainda comandava tudo com mão de ferro, mas Felipe era quem sujava as mãos cada vez mais.
Ao chegar à mansão fortificada em um condomínio privado com segurança armada, e muros altos que escondiam o mundo exterior, o caos ficou para trás. A paz veio como sempre: na forma de passinhos rápidos correndo pelo hall de entrada.
— Papai! — gritou uma vozinha animada.
Caio estava com quatro anos, cabelos pretos bagunçados, olhos cinza-escuros herdados do pai, veio correndo com os braços abertos. Felipe sorriu, o único sorriso genuíno do dia, e pegou o filho no colo, girando-o no ar.
— Meu terrorista favorito — murmurou, beijando a testa do menino. — O que você aprontou hoje?
Caio riu, um som puro e contagiante, abraçando o pescoço do pai.
Antes que Felipe pudesse perguntar mais, uma mulher de uns 30 anos apareceu no corredor. A babá da vez. Cabelos descabelados, roupa suja de tinta e o que parecia ser mingau, olhos vermelhos de exaustão. Arrastava uma mala pequena atrás de si.
Ela parou na frente de Felipe, ergueu o dedo indicador trêmulo e declarou:
— Eu me demito!
Não explicou nada. Virou-se e saiu em direção à porta, onde um dos seguranças já esperava para escoltá-la até o portão.
Felipe olhou feio para o filho, que sorria com carinha de anjo, os dentinhos aparecendo.
— O que você fez dessa vez, Caio?
O menino deu de ombros, inocente.
— Ela não queria brincar de monstro. Eu só escondi as chaves dela no aquário.
— Não foi só isso, ela estava toda suja.
— Eu construí algumas bombas de tinta com bexiga, ela tinha que desviar, mas é lenta, não sabe como se brinca.
Felipe suspirou, balançando a cabeça. Ele sabia. Caio era um terror. Inteligente demais para a idade, já lia livrinhos sozinho, montava quebra-cabeças de adultos, fazia perguntas que deixavam professores sem graça. Mas também era teimoso, criativo nas travessuras e expelia babás como se fosse um esporte. Dezenas já haviam passado por ali. Nenhuma durava mais de uma semana desde que ele aprendera a falar direito.
— Vamos dar banho em você — disse Felipe, carregando o filho para o andar de cima.
Enquanto enchia a banheira e lavava o menino, Felipe sentia o peso. Em breve teria uma viagem importante: negociações em outra cidade com fornecedores de diamantes. Precisava de alguém confiável para cuidar de Caio. Alguém que durasse.
Depois de colocar o filho para tirar a soneca da tarde, Felipe foi para o escritório e ligou para o irmão mais novo, Omar.
— Preciso de outra babá — disse sem rodeios.
Do outro lado da linha, Omar riu, mas era um riso cansado.
— Felipe, a lista está acabando. As agências já não querem nem mandar currículos pra cá. Dizem que o "menino Demirkan" é impossível. Eu tentei avisar que ele é só... enérgico.
— Enérgico? Ele é um furacão. Mas é meu filho. Encontre alguém. Qualquer uma. Eu pago o dobro.
— Vou tentar. Mas irmão... talvez precise de alguém especial dessa vez.
Felipe desligou, olhando pela janela para o jardim onde Caio brincaria mais tarde. Ele daria o mundo pelo filho. Mas encontrar alguém capaz de lidar com ele estava se tornando impossível.
Por muitas vezes, a palavra mãe dançava em sua mente. Felipe só se acalmaria com ela, mas... como pedir para alguém que não quer, que seja a mãe de seu filho?
Ele se lembrava bem daquela noite. Da mulher alta, loira, vestido curto e um bebê chorando em seus braços.
— É seu e eu não vou estragar minha vida com isso! — Disse passando o bebê para ele que duvidou. Mas quando a criança se acalmou em seus braços ele acreditou.
Fez um exame que lhe deu essa certeza, o problema, era não lembrar quem é a mulher, e nem quando dormiu com ela, mas... o sangue não mente e Caio tinha o dele.
Felipe voltou para o quarto e olhou o menino dormir. Sorriu. Aquele era o seu pedacinho de céu na Turquia.







