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Capítulo 6 — A SOMBRA DE UM NOME

O relógio da parede fazia um clique seco a cada minuto, como se cortasse o ar em fatias iguais. Eduardo Monteiro, ainda preso à camisola hospitalar e a um mundo de zumbidos e luzes frias, mantinha os olhos no teto, perseguindo uma rachadura que desenhava um galho. A cabeça latejava sob a faixa, mas o incômodo maior vinha do vazio entre lembrança e realidade: ele sabia que tinha vivido algo que não queria perder. E esse algo tinha cor de cobre e olhos quentes.

— Bom dia, juiz Eduardo — anunciou a enfermeira Letícia, entrando com o carrinho. — Dor de zero a dez?

— Três — respondeu, automático, sem tirar os olhos do galho.

— Ótimo. Vai reduzir durante o dia. — Ela conferiu o acesso, as medicações, as anotações. — O neuro vem passar visita às dez. O senhor descansou?

Ele hesitou. Descansar não parecia o verbo certo. Fechou os olhos e viu, como já vira em repetições trêmulas, a curva de neblina, o som do metal, a pressão firme de uma mão comprimindo sua têmpora. E a voz. Inspira… solta devagar.

— Um pouco — disse por fim. — Como cheguei?

— Ambulância do SAMU. — Letícia sorriu de leve. — E com sorte: alguém prestou primeiros socorros na estrada. Manteve o senhor alerta e o sangramento sob controle. Isso mudou tudo.

Eduardo quis perguntar quem, mas a pergunta trouxe consigo um ridículo íntimo, como se tivesse de admitir um segredo para o próprio corpo. Preferiu calar.

Quando Letícia saiu, o quarto retomou o clique do relógio, a brisa fria do ar-condicionado, o vaivém dos passos no corredor. Eduardo ergueu-se um pouco com cuidado, sentindo as costelas protestarem. Na mesa de cabeceira, o celular vibrava: mensagens da secretária, da ex-esposa, do assessor de imprensa do tribunal. Ignorou as duas últimas. Abriu a de Carla, eficiente como sempre:

Bom dia, doutor. Já avisei à Presidência sobre o acidente. Audiência de hoje redistribuída. Passo às 14h para levar o que precisar.

Digitou devagar:

Obrigado, Carla. Preciso de um favor: tente descobrir quem foi a pessoa que prestou os primeiros socorros na estrada. Alguém mencionou uma mulher.

A resposta veio em segundos:

Vejo com a PRF e com o hospital. Nome?

Ele segurou o impulso de escrever Vivian — a palavra ainda era uma ponte sem margem. Apagou o campo.

Ainda não sei. Trate como informação sensível.

Guardou o telefone e respirou fundo, testando o corpo por dentro. A dor no crânio era suportável, a tontura se rendia. O que não cedia era a necessidade de fechar um circuito que ficara aberto. Se eu não lembrar, perco alguma coisa que importa.

— Posso? — a voz de Carla surgiu na porta, horas antes do combinado. Ela entrou com uma pasta azul e uma sacola de itens pessoais. — Trouxe suas coisas. O presidente mandou votos de pronta recuperação. E… flores.

— Flores? — Ele arqueou a sobrancelha.

— Chegam mais tarde. — Carla aproximou-se, profissional e afetuosa no tom certo. — Consegui o registro do SAMU: a equipe cita “primeiro atendimento prestado por transeunte, sexo feminino, ruiva”. Sem nome. PRF está levantando câmeras da rodovia. Mas, doutor… — baixou a voz — o senhor tem certeza de que quer mesmo ir atrás disso? A imprensa fareja qualquer detalhe.

Eduardo sustentou o olhar dela, lúcido.

— Quero agradecer. Só isso.

Carla assentiu, embora não acreditasse em “só isso”. Ele raramente abria janela para o lado íntimo da vida; quando abria, era porque deixara de ser escolha.

— Falo com a PRF e retorno. — Fez menção de sair, hesitou. — Foi por pouco, não foi?

— Foi por… ela. — A palavra escapou antes que pudesse controlar. Carla captou e guardou, silenciosa.

Quando a neurocirurgiã entrou para a visita, Eduardo voltou ao papel de paciente ideal: atento, colaborativo, perguntas objetivas. TCE leve, hematoma subgaleal, observação por mais vinte e quatro horas, analgesia. Sem sequelas aparentes. Ao final, a médica comentou, quase como curiosidade:

— Raramente encontramos paciente com esse nível de consciência após um impacto assim. Primeiro atendimento correto faz uma diferença absurda.

Ele pensou em dizer eu sei, mas apenas assentiu.

À tarde, a fisioterapeuta o colocou sentado na beira da cama, depois de pé, a passos lentos. O corredor cheirava a éter e café fraco; um senhor arrastava um suporte de soro; uma criança ria alto numa sala ao lado. Eduardo sentiu o mundo voltar a se encaixar — primeiro como peça de madeira, depois como metal. Ao dar o quinto passo, o peito apertou não de dor, mas de falta: a vontade irracional de encontrar, naquele mesmo corredor, a mulher de cabelos de cobre, como se o hospital inteiro fosse um palco para esse reencontro.

— Tá tudo bem? — perguntou a fisioterapeuta.

— Só cansado — mentiu.

No fim do dia, Carla retornou com novidades:

— Duas notícias. A boa: a PRF já isolou os horários e vai verificar as câmeras de um pedágio próximo. A ruim: há possibilidade de a visibilidade ter prejudicado a captação. A neblina foi densa na madrugada.

— A boa basta por hoje. — Ele entregou um sorriso mínimo. — Obrigado, Carla.

— E… — ela pigarreou, abrindo a pasta — o senhor pediu discrição, mas um segurança da portaria reconheceu seu nome quando chegou. Há jornalistas ligando para saber “se o juiz do caso Dias comparecerá à audiência adiada”.

— Não vou dar declarações. — O olhar voltou ao teto, ao galho de tinta. — Não hoje.

Quando ficou sozinho, Eduardo tentou dormir. De novo, o corpo cedeu, mas a mente teceu o mesmo filme: neblina, curva, impacto, a mão quente, a voz compassada. Vivian. A sílaba agora vinha inteira, colhida do rádio entre prédios, do chiado de um corredor, do acaso. Vivian. Ele enfiou a palavra no bolso como quem guarda um amuleto. Oliveira? A segunda ainda não voltara como devia.

Em Sant’Ana do Vale, no mesmo fim de tarde, Vivian descia do ônibus com a mochila batendo no quadril. A mensagem de Marlene piscava: Passe aqui antes de voltar à república. Fiz sopa.. Ela foi. Na cozinha, o cheiro de alho e cheiro-verde abraçava os azulejos antigos. Mariana, de moletom, desenhava um mapa de estrelas num caderno.

— Você não vem morar com a gente de novo? — a menina perguntou, quase distraída, como quem pergunta sobre o clima.

— A república fica mais perto da faculdade, Mari. — Vivian sentou ao lado, encostando a cabeça no ombro da irmã. — Mas eu venho todo dia que der. Promessa de mindinho.

Cruzaram os dedos, riram. Marlene serviu a sopa, a tv baixinha num jornal local falando de “acidente na BR ao amanhecer”. Vivian desviou os olhos. Viu-se por um segundo ajoelhada no asfalto, sentiu o peso da cabeça dele em seu colo, o calor do sangue no casaco. E, como um reflexo, ouviu de novo a voz de Camila da noite anterior, plantando veneno com perfume caro: Você nasceu para ser a Selvagem.

— Você tá longe — Marlene observou, sentando-se. — É falta de sono ou excesso de preocupação?

— Os dois — Vivian admitiu. — Mas vai passar.

Ela não disse que a ideia de “atalho” tinha se tornado um barulho de fundo. Não disse que começara a dividir o mundo em colunas: certo e possível. Apenas ajudou a lavar a louça, beijou a testa de Mariana e prometeu trazer pão de queijo no dia seguinte.

No ponto de ônibus, o celular vibrou. Número desconhecido. Mensagem curta: Sou o paramédico que atendeu o acidente. A mulher que socorreu o juiz deixou um casaco ensanguentado. Se quiser buscar, está no posto base. Vivian sentiu o chão ceder um centímetro — não por medo, mas por pudor. O casaco velho, agora prova viva do que ela não queria transformar em história.

Respondeu: Obrigada. Amanhã cedo passo aí.

Guardou o telefone e subiu no ônibus. No vidro, a própria imagem devolveu-lhe os olhos cansados e uma pergunta sem forma.

De volta ao hospital, a noite já tinha engolido as janelas quando Carla reapareceu na porta, hesitante.

— Doutor… a PRF enviou uma foto de baixa qualidade do pedágio, poucos minutos antes do acidente. — Ela aproximou a tela. — Dá pra ver seu carro. E… atrás, por alguns quilômetros, um hatch claro. A câmera pegou o adesivo de uma clínica infantil no vidro.

Eduardo aproximou o rosto. A imagem era ruim, mas não precisava ser boa para acender uma certeza: não era só ele na estrada; alguém seguia no mesmo destino. Talvez ela.

— Veja se localizamos essa clínica — disse, já com a mente voltando aos trilhos do método. — Cruzamos horários, pedimos ao hospital de oncologia planilhas de chegada por faixa de tempo. Alguém vai lembrar do adesivo.

Carla respirou, impressionada com a lucidez que voltava afiada.

— O senhor vai longe assim… só para agradecer?

Ele segurou a resposta. Olhou o teto, o galho. Pensou na palavra que trouxera do escuro.

— Eu devo a ela a minha vida — disse, afinal. — E a mim mesmo, a lembrança inteira.

Carla deixou o quarto em silêncio. O relógio voltou a cortar o ar. Eduardo fechou os olhos, e o nome veio outra vez, claro, como se a própria madrugada o sussurrasse: Vivian.

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