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CAPÍTULO 7 – O SUSSURRO DA TENTAÇÃO

O sábado amanheceu com um céu pálido sobre Sant’Ana do Vale, daqueles que não decidem se abrem para o sol ou se voltam a fechar. Vivian chegou cedo à casa de tia Marlene com uma sacola de pão de queijo e dois pacotes de chá. Bateu devagar, como sempre fazia quando tinha a impressão de que o mundo pesava mais do que o corpo aguenta.

— Entra, minha filha — disse Marlene, já de avental, cheiro de sabão e café. — Mariana tá no quarto, fazendo os desenhos dela.

Vivian deixou a sacola na mesa e foi até o quarto. Encontrou a irmã debruçada no caderno, a língua levemente para fora na concentração infantil, colorindo um céu com estrelas desproporcionais.

— Bom dia, minha artista — disse, encostando a testa na dela.

— Bom dia — Mariana sorriu. — Olha, Vivi. É a gente num foguete.

Vivian viu duas figuras de mãos dadas: uma de cabelo comprido laranja, a outra com uma manta azul nos ombros. Viu também uma lua enorme, com sorriso. Por um instante, sentiu vontade de chorar por algo que não tinha forma: saudade de um futuro que talvez nunca fosse como desenhado.

— Tá lindo — sussurrou. — Depois você me explica como liga os botões do foguete, tá? Eu sempre aperto o errado.

— Eu explico — Mariana riu. — Você só precisa treinar.

Treinar. A palavra ficou vibrando como campainha. Vivian pensou nas aulas de enfermagem, no seminário de Semiologia esperando por ela em folhas rabiscadas, na vida que parecia exigir dela não treino, mas renúncia.

Na cozinha, Marlene mexia o café enquanto olhava pela janela para o quintal pequeno. Era prática nos gestos, no jeito de falar, nas contas que fazia de cabeça. Colocou três pães de queijo no prato de Mariana, dois no de Vivian, um no seu.

— Eu trouxe mais — protestou Vivian, empurrando um para a tia.

— Deixa de besteira — respondeu Marlene, sentando-se. — Você come pior do que estudante em fim de mês.

Comeram em silêncio por alguns minutos, o bom silêncio de quem divide casa e cansaço. Até que Marlene, sem rodeios, abriu a gaveta e puxou um maço de boletos cuidadosamente presos com elástico.

— Vou ser direta, Vivi. A gente tá conseguindo, mas no limite do limite. Os remédios do próximo mês e o transporte das consultas vão estourar o que tenho guardado. — Olhou a sobrinha de frente. — Você precisa de uma saída mais rápida. Temporária que seja.

Vivian sentiu o rosto esquentar. Pensou em dizer “eu sei”, mas a frase soaria vazia.

— Eu tô procurando plantão extra no hospital universitário — disse, e era verdade. — E tem a bolsa que talvez saia… se eu conseguir uma nota boa no seminário.

Marlene suspirou, como quem adoraria que a vida obedecesse aos prazos acadêmicos.

— Reza pra bolsa, então. — Passou a mão no rosto cansado. — E me promete que não vai fazer nada que te envergonhe depois. A gente aguenta mais um pouco, do nosso jeito.

Vivian assentiu, e a promessa ficou pendurada no ar, com o peso dos pactos feitos sem garantia.

***

Na república, o apartamento tinha cheiro de creme hidratante e roupa secando no varal da sala. Ciça estava deitada no tapete, estudando com um marca-texto na mão, os pés balançando no ar.

— Olha quem apareceu — disse, sorrindo com os olhos. — Tia Marlene te alimentou?

— Pão de queijo e sermão. — Vivian largou a mochila e sentou, deixando o corpo afundar. — “Saída rápida, temporária que seja”. A frase que me dá arrepios.

Ciça apoiou o queixo nas mãos.

— Ela tá assustada, você tá assustada, eu tô assustada. Tá todo mundo. Mas a gente pensa junto, tá? — Estendeu um pacote de bolachas. — Quer?

— Já comi demais. — Vivian riu fraco. — E você?

— Eu tô tentando terminar esse capítulo sobre Teoria da Comunicação, mas parece que toda frase foi escrita num idioma que não existe.

— Tamo juntas.

Silêncio breve. A lembrança da noite anterior atravessou como sombra. Camila. O sussurro. Scarlett. A Selvagem.

— Ciça… — Vivian começou, sem olhar. — E se… só por hipótese… alguém me mostrasse um jeito de ganhar muito dinheiro rápido?

Ciça sentou, alerta. O corpo todo dela, pequeno e sólido, virou atenção.

— Você tá falando da Camila.

— Tô falando de uma hipótese — desviou, envergonhada. — E se eu fosse ver como é “de verdade”, sem compromisso? Só ver.

— Não. — A resposta veio na mesma hora, firme, sem espaço para dúvidas. — Não, Vivi. “Só ver” é o truque. É assim que o mundo te puxa. Primeiro você olha, depois você entra, depois acha que pode controlar. E quando vê, já virou você.

Vivian fechou os olhos um segundo. Tinha vontade de ser defendida do lado de fora e do lado de dentro de si.

— Eu precisava ouvir isso — disse, e sorriu sem alegria. — Obrigada.

Ciça se aproximou e apoiou a testa na dela, como as duas faziam quando uma estava no limite.

— Eu não vou te deixar cair.

Antes que o momento desmanchasse, a porta bateu. Camila entrou como um closet ambulante: short de alfaiataria, camisa branca aberta num V perfeito, perfume que queria ser lembrado. Trazia duas sacolas de boutique.

— Cheguei, minhas santas — anunciou. — E trouxe presente.

Vivian e Ciça se entreolharam. Camila colocou sobre a mesa uma caixa comprida e puxou um vestido preto de seda que escorregou como água pela mão.

— Para você, ruiva. — Ergueu o tecido na altura do corpo de Vivian. — Só pra provar. A gente pode ter um gosto por coisas bonitas, mesmo que seja só pra olhar no espelho.

— Camila… — Ciça avisou, mas a voz respondeu no vazio.

Vivian tocou o tecido por reflexo. Era leve, frio, caro. Pensou em como a seda devia se comportar sob luz baixa; pensou na palavra “exclusiva” e sentiu vergonha de pensar. Deu dois passos para o quarto.

— Só provar — disse, quase pedindo desculpa a si mesma.

Quando voltou, o vestido caía perfeito, como se sempre tivesse sido dela. Ciça olhou com tristeza. Camila sorriu, satisfeita.

— Viu? — Camila sussurrou, caminhando em círculos ao redor da amiga, ajustando a alça. — O mundo não tem defesa contra isso. Você é um acontecimento, Vivian. — E baixinho, no ouvido: — Scarlett.

Vivian fechou os olhos. O nome falso não era só uma palavra; era uma promessa com dente.

— Tira — pediu Ciça, num fio de voz. — Por favor.

Vivian tirou. A seda voltou à caixa, e com ela, por um momento, o ar da sala.

— Eu vou estudar — disse, como se precisasse se lembrar do que ainda era. — Tenho seminário.

Camila não desistiu. Sentou na ponta da mesa e cruzou as pernas.

— Uma hora, um lugar discreto, só pra você ver. Sem compromisso, sem nada. Você entra comigo, eu te protejo. E se não gostar, nunca mais falo nisso. — Olhou de frente, sem ironia. — Eu juro.

Vivian encarou o chão. Tia Marlene, boletos, remédios, ônibus. Depois, a irmã e seu foguete de lápis de cor. Depois, o rosto do homem na estrada, o peso da cabeça dele no seu colo, a sensação rara de estar fazendo exatamente o que nasceu para fazer. Entre tudo isso, a voz de Camila passou como vento de porta entreaberta.

— Eu… — começou.

O celular vibrou na mesa e a salvou da resposta. Número desconhecido. Mensagem curta: Aqui é o paramédico João, do SAMU. O casaco da senhora está separado no posto. Caso queira, pode retirar hoje até 18h. Vivian respirou, grata por uma tarefa concreta.

— Vou buscar uma coisa — disse, pegando a mochila. — Já volto.

— Quer companhia? — perguntou Ciça.

— Não precisa. — Olhou para Camila. — Eu… eu te aviso.

Camila sorriu com a vitória miúda de um centímetro.

— Eu estarei esperando — respondeu, e a frase tinha o som de promessa e armadilha.

***

No posto do SAMU, o cheiro de borracha e café requentado. João, jovem, olhos gentis, devolveu o casaco lavado e embalado num saco transparente.

— Você fez a diferença — disse, sem floreios. — Nem todo mundo pára. E menos gente ainda sabe o que fazer quando pára.

Vivian recebeu o casaco como quem recebe um diploma não oficial. Sorriu com os olhos, agradeceu, guardou. Ao sair, o vento da tarde levantou os cabelos ruivos. O sussurro que a acompanhou não veio de Camila, nem do vento. Veio de dentro.

Se eu conseguir salvar vidas… por que não a da minha irmã primeiro?

A pergunta ficou martelando no ônibus, na subida da rua, na porta da república. Ao entrar, ouviu o chuveiro do banheiro e o tec-tec das teclas de Ciça no quarto. Na mesa, a caixa da seda ainda estava ali, fechada, comportada. Vivian encostou a mão na tampa, sem abri-la.

— Ciça? — chamou.

— Oi? — a amiga surgiu à porta, moleton, cabelo preso, olhos que sabiam ler antes da fala.

Vivian respirou fundo.

— Se eu for ver… só ver… você vem comigo?

Ciça demorou um segundo. O suficiente para mostrar que aquilo doía. Depois assentiu, como quem segura uma ponte com o próprio corpo.

— Eu vou. — E apertou os lábios, decidida. — Eu não te deixo sozinha.

Vivian sentiu um alívio que era metade culpa, metade gratidão. Olhou a caixa, olhou a amiga.

Lá fora, o céu finalmente se abriu num facho tímido. Dentro, nada estava decidido. Mas o sussurro da tentação, que antes era vento, agora tinha endereço, hora, e duas mulheres de mãos dadas para enfrentá-lo.

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