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CAPÍTULO 5 – A TENTAÇÃO

A noite na república tinha um jeito de se repetir como filme antigo: a televisão chiando em algum canal aberto, o cheiro de macarrão instantâneo vindo da cozinha e os livros de Vivian abertos sobre a mesa, tentando disputar espaço com contas espalhadas. Mas naquela sexta-feira o ar parecia diferente. Mais pesado, como se alguém tivesse fechado uma porta que deixava o vento entrar.

Vivian havia voltado cedo do ambulatório. Mariana ficara com tia Marlene por dois dias — a promessa de que a menina descansaria melhor longe do sobe e desce da república. Agora, sozinha no quarto, Vivian tentava se concentrar em um artigo de Semiologia, mas a letra miúda dançava na página. Na pasta ao lado, os exames da irmã e a fatura do hospital pareciam respirar. Cada número era um grão de areia pesando do mesmo lado da balança.

Ciça entrou descalça, equilibrando uma xícara de chá de erva-doce. O coque no alto da cabeça havia desabado, deixando mechas castanhas caírem sobre o rosto.

— Você vai virar a noite, Vivi? — perguntou, depositando a caneca ao lado dos cadernos.

— Preciso terminar esse resumo — respondeu, sem esconder o cansaço. — O professor é daqueles que cortam ponto por vírgula fora do lugar.

— O que você precisa é dormir — disse Ciça, puxando a cadeira ao lado. — E dividir o peso. Ninguém aguenta carregar tudo sozinha: a faculdade, a Mariana, o estágio, o aluguel…

Vivian forçou um sorriso de canto. — Difícil quando o peso não respeita a matemática.

Antes que a amiga pontuasse, a porta do quarto abriu num estalo. Camila entrou com a aura de outra realidade: vestido preto que abraçava o corpo, maquiagem impecável às nove da noite, perfume doce que anunciava o caminho. Trazia o salto nas mãos, como quem descansa do mundo.

— Boa noite, princesas! — anunciou, jogando-se na cama com teatralidade. — O povo não sabe se divertir sem mim.

— Você não tem chave? — resmungou Vivian, sem maldade, mais pela cena do que pela pessoa.

— Tenho, mas eu gosto de fazer entrada — Camila piscou, rindo sozinha.

Ciça revirou os olhos, mas a expressão ficou mais curiosa quando percebeu a sacola elegante no braço da amiga. — Comprinhas?

— Mimos — disse Camila, erguendo um frasco de perfume importado. — Uma dama precisa de bons aliados.

Vivian deixou os olhos caírem sobre o frasco e, por um segundo, sentiu vergonha de ter calculado o preço mentalmente. Uma quantia que fazia falta na farmácia de Mariana. Fechou a pasta com um gesto rápido.

— Exames de novo? — perguntou Camila, com doçura ensaiada. — Você vive com papelada triste em cima da mesa.

— Não é triste — respondeu Vivian, baixa. — É a vida da minha irmã.

— E a sua? — Camila encostou o ombro no batente, estudando a amiga. — Você vai se apagar no processo?

Ciça adiantou-se, protetora. — Camila…

— O quê? — Ela ergueu as sobrancelhas. — Alguém precisa dizer em voz alta.

Vivian sustentou o olhar. — E o que você diria, então?

O sorriso de Camila veio lento. — Que você pare de se matar por migalhas e descubra o quanto realmente vale.

— Não começa — cortou Ciça, seca.

— Eu só ofereço caminhos — Camila deu de ombros, um gesto que deslizava como seda. — Vocês é que insistem em morrer numa ideia de sacrifício romântico.

— Você quer dizer “atalho” — disse Vivian. — E todo atalho cobra pedágio.

Camila sorriu de verdade, como quem encontra graça na obviedade. Aproximou-se, as meias reluzindo na luz amarela do abajur, e parou diante da mesa. O olhar viajou por cima das folhas até pousar na ruiva, por inteiro.

— Ouve: beleza é só o cartão de visita. O que você tem, pouca gente tem. Presença. Olhar que prende. E essa coisa… — seus dedos fizeram um gesto no ar, como quem descreve algo invisível. — Essa coisa indomada. Selvagem. — A palavra saiu redonda, quase um diagnóstico. — Se quisesse, seria exclusiva. Uma lenda na noite.

O silêncio caiu como uma cortina. Ciça recolheu a caneca, tensa. Vivian sentiu o coração descompassar. “Selvagem” girou dentro dela como um carimbo que ninguém vê, mas que marca a pele. A mente quis repelir, mas a imaginação, traidora, levantou a possibilidade como quem prova um vestido proibido: e se?

— Não é vender o corpo — Camila seguiu, percebendo a fresta. — É negociar poder. E você tem mais poder do que qualquer homem que eu conheça suportaria admitir.

— E o preço? — Vivian perguntou, sem perceber que a voz saíra mais baixa.

— O preço é escolher — Camila respondeu, simples. — Escolher quando, com quem, por quanto. Escolher a vida da sua irmã em vez da sensação de estar sempre perdendo. — Aproximou-se um pouco mais. — Eu conheço gente. Não qualquer gente. As portas certas. Você não estaria no salão com cardápio. Você seria o evento. Exclusiva.

Ciça colocou-se entre as duas, braço cruzado, um muro delicado. — Você não vai arrastar a Vivi para os seus contos de fada. Ela tem futuro. Ela salva pessoas.

Camila não recuou. — E não é justamente por isso que ela faria qualquer coisa pela irmã? Às vezes salvar exige outra ferramenta. Dinheiro. — Virou-se de leve para Vivian, baixando o tom. — Ninguém vai segurar tua mão no caixa da farmácia, Vivi. Nem o professor de Semiologia, nem o médico que te elogiou. Quem vai pagar?

Vivian sentiu o rosto esquentar. As palavras do hematologista, horas antes — “Não deixe a vida te convencer do contrário” — voltaram como um quadro torto na parede. Quem o endireita quando a parede cede? Ela quis dizer “não”, de um jeito muito grande, que encerrasse as conversas futuras. Mas ao abrir a pasta, os números a encararam como se tivessem olhos. A única resposta que encontrou foi o silêncio.

Camila percebeu e sorriu como quem vence um centímetro no tabuleiro. Sentou à beira da cama, calçou os saltos com calma. A luz amarela desenhava sombras nas maçãs do rosto. Antes de se levantar, inclinou-se no ouvido de Vivian e sussurrou, com uma gentileza cruel:

— Pensa nisso, Scarlett. Você nasceu para ser a Selvagem.

O codinome ainda não existia, mas a palavra acendeu um fósforo em lugar escuro. Vivian fechou os olhos. Viu, por dentro, a estrada na neblina, o homem respirando sob suas mãos, a voz contando o compasso da vida. Viu, também, a prateleira da farmácia, os frascos que custavam semanas de ônibus, os calendários riscados com retornos. Entre um quadro e outro, uma ponte apareceu: curta, arriscada, brilhante.

— Sai do meu quarto, Camila — disse Ciça, com doçura firme que só melhores amigas conseguem. — Agora.

Camila sorriu, recolheu a bolsa e caminhou até a porta. No batente, virou-se.

— Eu volto amanhã. Se a resposta for “não”, eu continuo amando vocês. Se for “talvez”, eu te levo para ver como é de verdade. Sem compromisso. — Olhou para Vivian por um segundo a mais. — E sem julgamentos.

A porta bateu, e a república voltou a respirar. O barulho longínquo de um vizinho arrastando cadeira, uma moto cortando a rua, a televisão do quarto ao lado cuspindo risadas enlatadas. Ciça puxou uma cadeira e sentou bem na frente de Vivian, pegando suas mãos, como quem acende um abajur num blecaute.

— Não ouve — disse, e a voz quebrou só um milímetro. — Você não precisa disso. A gente dá um jeito. Eu faço mais turnos na papelaria, a gente divide, conversa com a dona Sílvia do aluguel… dá um jeito.

Vivian queria dizer “tá bom”, “eu prometo”, “eu nunca faria”. Queria que as palavras virassem uma ponte diferente. Em vez disso, assentiu, sem prometer nada que não pudesse cumprir. Sorriu triste para a amiga, apertou seus dedos.

— Obrigada, Ciça.

As duas ficaram em silêncio por um tempo. Depois, Ciça recolheu a caneca, apagou a luz do teto, deixou só o abajur aceso e deu boa noite. Quando ficou sozinha, Vivian abriu a janela. O ar frio da madrugada entrou com cheiro de chuva. Da rua, um gato miou, insistente.

Ela voltou à mesa e passou os olhos pelos livros abertos. Tentou ler duas páginas. Na terceira, percebeu que estava repetindo a mesma linha. Fechou o caderno, colocou a pasta dos exames sobre ele, como quem decide que um peso resolve o outro. Olhou o celular: uma mensagem de Marlene — “Mariana dormiu. Fica tranquila.” Outra de um número desconhecido: “Camila me passou seu contato. Sou discreto. Quando quiser conversar.” Apagou sem responder. Mas a tela, ao apagar, devolveu o próprio rosto: cansaço, olhos…

Deitou, enfim. O teto da república tinha uma rachadura no canto; parecia um mapa de rio. Seguiu as linhas com o olhar até o sono chegar. Quando veio, foi um sono de margens altas, transbordando imagens: uma sala de luz baixa, taças tilintando, gente bem vestida dizendo seu nome novo com uma reverência quase religiosa. “Scarlett”. E, ao fundo, outra imagem puxava as bordas do sonho: um par de olhos escuros, turvos, lutando para ficar. A voz dela dizendo “inspira… solta devagar”.

Entre essas duas margens, Vivian adormeceu. E a semente, silenciosa, ganhou terra.

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