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CAPÍTULO 8 – O PRIMEIRO PASSO NO ABISMO

A noite caiu sobre Sant’Ana do Vale como uma coberta fina. A cidadezinha foi apagando as luzes aos poucos, enquanto três mulheres esperavam no ponto de ônibus da avenida principal: Camila, montada como se fosse para uma estreia; Ciça, discreta, com um casaco surrado; e Vivian, de jeans escuro, cabelo preso, uma maquiagem mínima que disfarçava o cansaço. O destino era Curitiba. Não para ficar — ainda não —, mas para ver.

— Última chance de desistir — avisou Ciça, meio rindo, meio rezando.

Vivian respirou fundo. — Eu não tô dizendo sim. Eu só… preciso entender o que tão me oferecendo.

Camila sorriu, vitoriosa. — Entender é o primeiro passo para escolher direito.

O ônibus chegou com um suspiro de ar comprimido. Dentro, o frio do ar-condicionado mordeu os braços de Vivian, que abraçou a própria mochila. A estrada abriu-se em fita escura, sem neblina daquela vez. O balanço suave embalou pensamentos que ela não queria nutrir: frascos de remédio, boletos, a voz do médico dizendo “vale cada centavo” e o rosto do homem na estrada, os olhos lutando para ficar. Ela não queria misturar mundos, mas eles já tinham se trombado dentro dela.

A entrada em Curitiba foi como abrir uma janela para outra língua: viadutos, luzes, fachadas espelhadas, buzinas impacientes. Camila, confortável no cenário, guiou as duas por ruas que pareciam saber o caminho de cor. Pararam diante de um prédio de esquina, fachada de bar elegante, toldo preto discreto. Uma pequena fila de carros importados fazia parecer que ninguém estava com pressa.

— Respirem — disse Camila, ajeitando a gola. — Aqui é o lugar certo. Não é “qualquer” lugar.

O segurança na porta reconheceu Camila de imediato. Um aceno, um sorriso profissional, e elas entraram. O salão principal tinha luz baixa, âmbar, que tornava todos bonitos. Garçons de preto flutuavam com bandejas de taças silenciosas. No fundo, uma banda tocava um jazz contido. Nada de vulgar; tudo de intenções.

Vivian, estudante de enfermagem, percebeu o ambiente com olhos clínicos: as mãos inquietas do homem sozinho no balcão (tremor fino, ansiedade), o salto apertado da mulher rindo à mesa (calcanhar machucado), o casal que conversava com proximidade milimétrica (negociação). Cada gesto tinha propósito. Ali, as pessoas não apenas bebiam; elas representavam.

— Calma, ruiva — murmurou Camila, guiando-as para uma mesa lateral. — Você só vai observar hoje. Ninguém encosta em você. Eu prometo.

O gerente surgiu com elegância calculada. Quarenta e poucos anos, terno impecável, voz baixa que não precisava subir para ser ouvida.

— Camila. Sempre um prazer. — O olhar dele varreu Vivian com respeito e interesse, sem descaramento. — E quem é sua convidada?

— Ela veio ver — respondeu Camila, firme. — Só ver.

— Claro. — Ele assentiu. — Bem-vinda. Aqui, tudo é escolha. — Sorriu quase terno. — E escolha, minha cara, só vale quando é consciente.

Vivian agradeceu com um gesto mínimo. Quis perguntar quantas escolhas ali eram de fato livres. Engoliu a pergunta com a água com gás.

Os minutos passaram com uma coreografia de entradas e saídas. Uma mulher morena cumprimentou Camila com beijo e sussurro. Um homem alto pediu ao barman um rótulo específico, como quem testa fronteiras. Uma loira de vestido prateado atravessou o salão com passos lentos, mais dança que caminhada. Vivian notou como os olhares seguiam as mulheres como bússolas. Sentiu-se, por um segundo, alvo por estar ao lado de Camila. Ciça apertou sua mão por baixo da mesa — estou aqui, dizia o gesto.

— Você chamou atenção sem se levantar — comentou o gerente, voltando com três taças. — Isso não é comum. — Baixou o tom, sério. — E é um perigo, se você não souber usar.

Ciça ergueu o queixo, desconfiada. — Ela não está à venda.

— Nem ninguém aqui, se não quiser — respondeu ele, sem ofensa. — Mas o mundo gosta de pensar que tudo tem preço. — Deixou as taças. — Fiquem à vontade.

Um cliente grisalho, educado no jeito e no corte do terno, aproximou-se com um sorriso de catálogo.

— Posso oferecer uma bebida à jovem ruiva?

Camila entrou um passo à frente, doce e afiada. — Hoje não, querido. Ela só veio conhecer. — Toque leve no braço dele. — Outro dia, talvez. Se ela quiser.

— Claro — ele recuou com classe. — Uma pena. — O olhar voltou a Vivian por um segundo a mais, registrando-a como se guardasse um nome que ainda não existia.

Vivian percebeu que havia uma gramática silenciosa em tudo: quem fala primeiro, quem toca, quem recua, quem decide. E entendeu que ali, ao contrário do hospital, não se salvava gente; ajustava-se preço, desejo e teatro. Ainda assim, não conseguiu desprezar a força do lugar. Havia poder; havia dinheiro. Havia, sobretudo, a sensação inquietante de que algumas portas poderiam, de fato, resolver problemas que o mundo “correto” não resolvia.

— Tira o cabelo do rosto — pediu Camila, baixinho, como amiga arrumando amiga. — Deixa a luz encostar. — Fez isso ela mesma, e o cobre do cabelo de Vivian incendiou sob o âmbar.

— Eu não sei se pertenço aqui — confessou Vivian, a voz sincera que às vezes a traía.

— Não é sobre pertencer — Camila sorriu de canto. — É sobre caber. E você cabe em qualquer lugar que quiser.

Ciça segurou a taça com força. — E eu digo que alguns lugares cobram caro demais para caber.

As duas verdades ficaram se olhando, sem se combaterem. O gerente reapareceu na lateral, como quem faz uma anotação mental. Chegou mais perto, sem invadir.

— Se, um dia, decidir experimentar — falou para Vivian, com respeito real —, seria exclusiva. Nada de cardápio, nada de sala coletiva. Agenda pequena, clientes filtrados. Eu garanto. — E então, quase como selo: — E nunca sem sua palavra final.

A palavra “exclusiva” cortou Vivian por dentro. Ela viu Mariana de moletom azul, desenhos de foguete. Viu Marlene com os boletos presos no elástico. Viu a si mesma de jaleco, catálogo de veias e cuidados. Viu, por fim, a si mesma naquele salão: uma figura que os olhos seguiam, um acontecimento controlado. A cabeça disse não. O estômago não disse nada. O bolso disse tudo.

— Hora de ir — avisou Ciça, percebendo que o minuto antes da queda costuma parecer igual a qualquer minuto.

Camila assentiu. Não insistiu. Na saída, o gerente acompanhou-as até a porta, cordial como um maître de ópera.

— Boa noite — disse. — Voltem quando quiserem. Ou quando precisarem.

Do lado de fora, o vento frio da capital limpou a maquiagem do ar. As luzes pareciam mais brancas, o barulho mais áspero. Camila acendeu um cigarro, não para fumar, mas para ter onde pôr as mãos.

— Ele te batizou sem perceber — comentou, abrindo um sorriso pequeno. — Você não viu? Todo mundo viu. — Aproximou-se e sussurrou com aquela delicadeza cruel que já conheciam: — Scarlett. A Selvagem.

Vivian fechou os olhos um instante. O nome bateu e ficou. Não era sim, não era não. Era uma sombra com contorno.

Voltaram de ônibus, cada uma com o silêncio que merecia. Ciça encostou a cabeça no vidro e fingiu dormir. Camila ficou contando as luzes que passavam, como quem mede o tempo. Vivian abraçou a mochila e, pela primeira vez, entendeu que se aquele caminho fosse escolhido, não haveria como percorrê-lo ficando. Seria preciso mudar. A cidade pequena não caberia no segredo que a capital exigia.

De madrugada, a república cheirava a roupa limpa e corredor úmido. Vivian entrou no quarto, deixou a mochila no chão e sentou-se na cama. O vestido de seda ainda estava na caixa, como um convite que não expira. Passou a mão sobre a tampa, sem abrir.

No teto, a rachadura desenhava um rio. Ela seguiu o traço com os olhos, como quem procura a nascente. Em algum ponto, entre o início e a foz, a palavra voltou como quem não pede licença: Scarlett. A Selvagem. E, com ela, outra certeza que doeu mais que todas: se fosse dizer sim — ainda que sussurrado —, teria de dizer adeus a Sant’Ana do Vale.

O amanhecer encontrou Vivian sem resposta. Mas agora ela sabia, com uma nitidez sem dó: o primeiro passo tinha sido dado, e ele apontava para Curitiba.

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