Sant’Ana do Vale parecia ainda mais silenciosa quando Vivian voltou de Curitiba. O ônibus chegara tarde, a madrugada se dissolvendo em um amanhecer frio. Ela desceu com a sensação de carregar uma sombra presa ao corpo, como se tivesse deixado parte de si naquele salão luxuoso onde tudo brilhava demais para ser real. A cada passo, lembrava-se das luzes, do cheiro de perfume importado e do modo como os olhares pesavam sobre ela. Camila havia sussurrado em seu ouvido com a confiança de quem já sabia o destino da amiga: “Scarlett nasceu ontem. Agora só falta você aceitar.”
Ao entrar na casa da tia Marlene, foi recebida pelo cheiro de café requentado e o tilintar de pratos na pia. Mariana, com os cabelos ruivos embaraçados e olhos ainda sonolentos, correu até ela segurando uma folha de papel. — Olha, Vivi! Fiz você de jaleco. É você no hospital. — O desenho mostrava uma figura simples, sorridente, de jaleco branco, um estetoscópio mal rabiscado no pescoço. Vivian sorriu, mas o coração doeu. Aquela imagem era um reflexo da vida que desejava, mas que se tornava cada vez mais distante.
Marlene surgiu da cozinha enxugando as mãos no avental. Seu olhar cansado pousou sobre a sobrinha. — Você chegou tarde. Não é vida, menina, andar pra lá e pra cá desse jeito. — Fez uma pausa, respirou fundo e acrescentou: — As contas estão cada vez mais difíceis de segurar. A farmácia não perdoa, e a luz já veio com aviso de corte. A gente precisa de estabilidade, Vivian. A Mariana precisa de você firme.
Vivian abaixou os olhos. A tia não fazia ideia de onde ela estivera. Não sabia que, em Curitiba, um pedaço de sua inocência havia sido roubado por aquela promessa de dinheiro fácil e rápido. Não sabia que a ruiva alegre do desenho da Mariana estava prestes a se perder em outro reflexo: o da Scarlett, a Selvagem.
Horas depois, sozinha em seu quarto, Vivian abriu a mochila. Apostilas de enfermagem, anotações de anatomia e primeiros socorros. Sobre elas, amassados, estavam os boletos da faculdade e do hospital. Era como se dois mundos disputassem espaço na mesma mesa. Um clamava pelo sonho, o outro exigia sobrevivência. Ela fechou os olhos e suspirou, tentando imaginar uma saída.
No fim da tarde, encontrou-se com Ciça no pátio da faculdade. A amiga, com sua energia sempre calma, percebeu de imediato a inquietação. — Vivi, o que houve? Você está diferente desde que voltou. — Vivian hesitou, mas os olhos marejados entregaram o peso que carregava. — Eu vi coisas, Ciça. Coisas que podem me dar dinheiro… rápido. Dinheiro que a Mariana precisa. — A voz saiu embargada, como se confessasse um pecado.
Ciça segurou as mãos dela. — Eu sei que está difícil, mas você não precisa se perder. Você sempre acha que está sozinha, mas não está. Eu tô aqui. — As palavras foram um bálsamo, mas também soaram frágeis diante do buraco sem fundo que era a realidade. Vivian queria acreditar, mas a lembrança das cifras ditas por Camila ainda ecoava em sua mente.
E, como se o destino conspirasse, Camila apareceu mais tarde na república. Vestia um vestido justo, maquiagem impecável, sorriso triunfante. — Então, pensou no que te mostrei? — perguntou, sem rodeios. Vivian se calou. Camila se aproximou, abaixando a voz. — Você nasceu pra isso, Vivian. Aquele olhar selvagem não mente. É só aceitar. Scarlett já está aí, só esperando sair. — Tocou de leve no cabelo ruivo da amiga, como se marcasse propriedade.
Vivian engoliu seco. — E se eu disser não? — Camila deu um riso baixo. — Não existe não, Vivi. Existe a Mariana precisando de remédio. Existe a conta de luz que vai cortar. Existe o amanhã que não espera. É só questão de tempo. — Saiu deixando no ar o perfume caro, como rastro de tentação.
Naquela noite, Vivian beijou a irmã na testa antes de Mariana adormecer. — Eu vou cuidar de você, prometo — sussurrou. Ficou observando a respiração tranquila da menina, como se quisesse gravar aquele instante em sua memória. Depois, voltou para o quarto e deitou-se de olhos abertos, encarando o teto. Entre os livros da faculdade e os boletos amassados, sabia que havia uma escolha que não poderia adiar por muito tempo.
O silêncio da casa parecia gritar. A frase de Camila ecoava sem descanso: “Scarlett já está aí.” Vivian apertou os punhos contra o peito, sentindo o coração bater acelerado. Sabia que não era apenas uma questão de querer ou não. Era uma questão de sobreviver. De salvar a irmã, custasse o que custasse.
Antes de adormecer, a última certeza que lhe atravessou foi como um sussurro cortante: se fosse por Mariana, enfrentaria até o abismo.