Clara só queria um recomeço simples ao lado do filho. Mas aceitar o trabalho como cuidadora do respeitado Dr. Pedro Nogueira a coloca no centro de uma família rica… e cheia de segredos. Entre sorrisos contidos e promessas não ditas, ela conhece Henrique, o advogado perfeito, que parece ter todas as respostas. Mas é nos olhos intensos de Maurício, o filho rebelde, que Clara descobre uma faísca impossível de ignorar. Dividida entre dois irmãos e sufocada pelas manipulações da matriarca, Clara precisa aprender a impor sua própria voz. Entre amor, lealdade e escolhas dolorosas, ela descobre que recomeçar significa muito mais do que sobreviver: significa escolher a si mesma.
Leer másClara acordou mais cedo nesse dia. Era segunda-feira e, apesar de ainda não conhecer bem a cidade, sabia que pegaria trânsito. Tinha que levar o filho até a escola e depois correr para o local da entrevista. Entrevistas não eram frequentes, e por isso precisava aproveitar. Um salário razoável, benefícios e um horário que permitia estar com seu filho era mais do que havia encontrado ultimamente.
Então correu, arrumou Antônio e conseguiu seguir com tudo dentro do horário. Chegando ao local da entrevista, encontrou uma casa muito bonita. Não era uma mansão, mas lembrava aquelas casas tradicionais norte-americanas, grandes, com parte da fachada em pedras. Tudo parecia bem tradicional e, apesar de simples, tinha um ar de “coisa de rico”. Ela foi recebida por uma funcionária — uma espécie de faxineira e governanta — que pediu para que aguardasse na sala, pois a patroa logo chegaria. Em poucos minutos, uma senhora de aproximadamente 60 anos entrou na sala de forma calorosa e simpática. Ela secava as mãos com um pano de prato. Apesar da idade, não aparentava os 60 anos que se espera. Nada nela era exagerado, mas tudo era sofisticado. Tinha os cabelos tingidos de um loiro médio, olhos castanhos e um rosto delicado, porém marcante. Apresentou-se como Isadora Nogueira. Falou sobre sua casa, sobre a rotina de uma cuidadora de idosos ali, e também sobre a saúde do marido, o Dr. Pedro. Ele enfrentava vários problemas, mas o principal era a insuficiência cardíaca e problemas de locomoção causados por um AVC sofrido há alguns anos. As obrigações de Clara seriam fazer-lhe companhia, cuidar da alimentação, administrar os horários dos remédios e ajudá-lo a evitar esforços — já que ele era bem teimoso, como todo idoso de 75 anos. Elas se deram bem, e a Sra. Isadora resolveu apresentá-la ao paciente. Ao entrar no quarto, Clara se deparou com um senhor debilitado, mas que claramente já fora um homem forte e atlético. Tinha pouco cabelo — quase todo branco —, olhos muito azuis e grandes, e um rosto anguloso e expressivo, embora cansado, com olheiras. Um misto entre força e fragilidade. — Olá, senhorita. Você foi a sortuda escolhida para me ajudar? — Espero que sim — Clara respondeu, devolvendo o tom divertido da conversa. — Tem algumas coisas que eu não gosto, mas com o tempo a senhorita aprenderá. Diga-me, você gosta de ler? — Sim, mas não tanto quanto vocês, advogados. Gosto de ler por hobby mesmo. — Verdade, mocinha. Advogados leem muito, mas no geral é uma leitura enfadonha. Hoje, sendo aposentado, gosto de ler por diversão, assim como você. A propósito, sou Pedro. — Me desculpe, também não me apresentei. Me chamo Clara. A conversa seguiu de forma informal e até agradável. Clara se sentiu acolhida naquela casa. A princípio achou que seria um lar esnobe, mas as pessoas pareciam gentis e, mesmo com toda aquela aparência elegante, havia simplicidade. Dr. Pedro pediu que ela chamasse sua esposa, que havia saído durante a conversa. Do lado de fora, Clara encontrou a Sra. Isadora conversando com um homem alto, que lhe pareceu um segurança. Ela notou uma discussão já em seus momentos finais. A senhora falava entre os lábios: — Já disse que não quero que o irrite. Você sabe que ele não vai gostar das suas notícias. — Só vou informá-lo. Ele diz que faço questão de manter todos fora da minha vida, mas quando eu tento incluir vocês, sou arrastado para esse drama de novo. — Você começou com isso tudo. — Quatorze anos, mãe, pelo amor de Deus. Superem! — Você pode falar amanhã à noite, mas nada na frente da família. O homem suspirou e saiu pela porta. A senhora parecia incomodada com a discussão, mas caminhou até Clara com um sorriso. — Como foi a conversa com o Dr. Pedro? — Foi ótima. Ele é muito espirituoso e me indicou vários livros. — Maravilha. Vamos analisar seu currículo e, entre hoje e amanhã, ligaremos. Você tem disponibilidade para início imediato? — Sim, com certeza. Naquela mesma tarde, Clara recebeu o telefonema que tanto esperava. Foi aprovada e iniciaria no dia seguinte. Ela e o filho comemoraram juntos. Era um alivio ter encontrado um trabalho e que parecia bem legal. As economias já estavam acabando, o que deixaria ela e o filho em uma situação complicada. Tinham se mudado há apenas dois meses, pois Clara não aguentava mais a capital. Tudo remetia ao ex-marido. Dizia que a casa tinha o cheiro da traição dele. Seus amigos já não se importavam mais com ela. Desde que conheceu Kleber, ele a convenceu a se afastar de todos e, após tantos anos, eles já não sentiam sua falta. Quando descobriu que ele a traía com a própria chefe, estava tão distante de todos que não tinha com quem desabafar. Engoliu a mágoa e decidiu se mudar para uma cidade menor, que não conhecia, mas onde sua finada mãe havia nascido. Quem sabe, voltando às raízes, ela conseguiria se reencontrar. E parecia que Serra Alta era um bom lugar. Ao acordar no dia seguinte, sentiu que estava realmente recomeçando.Dona Isadora chegou cedo ao hospital. Estava cansada, mas mantinha a postura impecável. Desde que Pedro fora internado, os revezamentos entre os filhos e Clara haviam se tornado rotina. Pela manhã, ela mesma fazia questão de estar presente. No período da tarde, Clara assumia os cuidados. À noite, um dos filhos revezava a vigília ao lado do pai. Naquela tarde, porém, algo fora do script lhe chamou a atenção. Passava pouco das duas da tarde quando a porta do quarto se abriu. Dona Isadora esperava ver apenas Clara, mas para sua surpresa, Henrique entrou junto com ela. Notou que antes de entrar, eles haviam dito algo um ao outro que ela não ouviu e tinham um estranho ar de cumplicidade. Um outro detalhe quase imperceptível que acendeu o alerta em Isadora, foi quando estavam falando sobre o dia e no meio da conversa, Henrique tocou de leve o braço de Clara. Um gesto suave, natural e que provavelmente nem ele nem ela perceberam, mas não era nem um pouco profissional. Ela não disse nada. A
O médico terminou de examinar Dr. Pedro e olhou para Clara e Dona Isadora com um semblante tranquilo.— Aparentemente é uma infecção urinária, algo comum em idosos. Às vezes não dá febre nem dor, mas afeta o sistema neurológico e provoca confusão mental.— Ele estava bastante desorientado… — murmurou Clara, ainda preocupada.— Sim, e fizeram bem em trazer. Se tivesse demorado mais, poderia evoluir pra algo mais grave. Vamos iniciar os antibióticos ainda hoje e mantê-lo internado por alguns dias para observação. Em dois ou três dias ele deve melhorar bastante. Dona Isadora respirou aliviada.— Eu achei que fosse só cansaço…— É compreensível — disse o médico com gentileza. — Mas qualquer mudança brusca no comportamento, sono ou lucidez de um idoso deve ser observada com atenção. Clara apenas assentiu. Enquanto o médico se afastava para preencher os papéis da internação, ela se virou para Dona Isadora, com voz firme, mas respeitosa:— A senhora já avisou seus filhos? Eles
A campainha do apartamento de Clara tocou e ela achou que era Henrique, mas, ao olhar na telinha do olho mágico digital, viu seu vizinho Caíque. Então abriu a porta.— Oi, Caíque.— Oi, Clarinha. Vim trazer sua caixa de ferramentas. Muito obrigado, viu, minha querida. Não sei o que teria feito se não fosse sua ajuda.— Que isso… Se precisar, é só falar.— Trouxe também um bolinho de chocolate pra agradecer.— Ah, obrigada! Nem precisava, mas eu agradeço. E o Antônio, mais ainda. Nesse momento, Henrique subia as escadas e encontrou o vizinho. Sua simpatia característica não estava presente naquela hora, então cumprimentou Caíque de forma bastante breve. Clara se despediu do vizinho e o casal entrou.— O que ele queria? — perguntou Henrique, meio sem paciência.— Veio devolver minhas ferramentas. Você está bem?— Por que ele não tem as próprias ferramentas?— Sei lá, como vou saber? Que pergunta! Você não tá legal, né?— Só cansado. Nessa hora, Antônio saiu do quart
O jantar tinha terminado, mas Henrique ainda bufava impaciente, enquanto guiava o carro pela avenida silenciosa. Antônio dormia profundamente no banco de trás, com o rosto encostado no assento e Clara olhava a chuva que agora parecia diminuir.— Eu não devia ter esperado o Maurício surtar. Ficar ali fingindo que nada aconteceu não adianta nada … Ele me expôs na frente de todo mundo. – disse Henrique irritado. Clara manteve os olhos na rua. Não queria tomar partido, mas sentiu que deveria apaziguar a situação.— Não acho que foi exposição. Ele só falou o que tava entalado. Henrique soltou um riso abafado.— Ele tem inveja. Sempre teve. A diferença é que agora me envolve nos problemas dele com nossos pais pra justificar o ranço dele por mim… Clara suspirou. Não adiantava falar nada agora, ele estava ouvindo apenas a si mesmo. Desviou os olhos para o retrovisor, onde podia ver o filho adormecido. Depois, olhou de novo pra frente.— Se quiser, pode nos deixar no cruza
Maurício chegou ao apartamento, jogou as chaves na mesinha de cabeceira e se jogou na cama. Olhava para o teto. Tudo que ele menos queria agora era pensar, mas sua mente simplesmente não parava. Sentia-se aliviado, um pouco vingado e ao mesmo tempo muito triste com seu desabafo. A mente vagava por momentos da infância, quando a mãe o amava, o enaltecia, o chamava de meu campeão. Ele era bom nos esportes e sempre buscava ser melhor para agradá-la. Cada vitória, cada nota alta, cada prêmio fazia com que ela demonstrasse ainda mais seu amor por ele, até que ele começou a crescer e a ter suas próprias vontades. No começo, ele não entendia o que estava acontecendo. Demorou a perceber que o amor da mãe tinha uma condição: obedecer. Era como se existisse um contrato invisível: ela o amava, contanto que ele se encaixasse, dissesse "sim", que sorrisse no momento certo e que repetisse suas ideias como um eco, incapaz de questionar. Quando passou a dizer “não”, a contar seus próprios sonh
Após um jantar, outro já estava marcado. Os 39 anos de casamento de doutor Pedro e dona Isadora não seriam comemorados com grande festa, apenas um pequeno jantar em família, mas para os funcionários, parecia um Natal fora de época. Apesar dos convidados serem apenas os filhos e a neta, isso já era o bastante para deixar dona Isadora mais exigente do que o normal, pressionando todos à sua volta. Clara levou Antônio, pois ficaria o dia inteiro ajudando doutor Pedro, permitindo que Isadora se dedicasse aos preparativos. Sempre que surgia uma pausa, Clara também ajudava Marisa na cozinha. Naquele dia, a patroa exigiu todos uniformizados, inclusive Clara, que foi orientada a vestir um uniforme de copeira. Ela sentiu que ainda estava sendo punida por não ter tratado Henrique como “doutor” quando ele ligou. Parecia exagero para qualquer um, exceto para Isadora, que tinha o hábito de praticar pequenas vinganças silenciosas quando se sentia contrariada. Enquanto Clara se t
Último capítulo