Tinham se passado quatro meses desde a contratação de Clara como cuidadora, e esse tempo fortaleceu a jovem. Já não se sentia tão diminuída pela traição do ex-marido, nem se magoava quando Antônio passava alguns dias na casa do pai. Voltou a se sentir viva, otimista e a pensar no futuro.
Comentou com Dona Isadora sobre isso durante uma pausa para o café: — Eu estava pensando em começar uma faculdade no próximo semestre — disse, encarando a xícara entre as mãos. — Já sabe o que quer estudar? — Pensei em algo na área da saúde. Mas ainda não decidi — Bem, você acha que consegue passar em um vestibular? Não seria mais realista um curso mais curto? Clara sentiu o veneno nas palavras. Em parte ela realmente não acreditava que Clara tivesse esse tipo de capacidade intelectual, mas outra parte queria apenas lhe colocar em seu devido lugar, ou o lugar que ela achava que Clara pertencia. — Acho que eu tenho capacidade para passar no vestibular, mas talvez a senhora tenha razão. Algo com menor duração pode ser melhor… — Sim, é bom refletir. Não adianta entrar e depois desistir do curso porque ficou muito difícil. Clara respirou fundo, sem pressa para responder. — A senhora tem toda razão. Isadora assentiu, com um leve sorriso. — É… Apesar de não compreender a razão pela qual dona Isadora tinha comportamentos muitas vezes propositalmente desagradáveis, Clara começou a compreender melhor doutor Pedro. Ele era um pouco carente. Ficava feliz em ter companhia que o ouvisse, ou mesmo conversar sobre as notícias. Ele ficava especialmente feliz quando Clara lia os livros que ele lhe entregava e depois falavam a respeito deles. No fundo, ele era uma pessoa doce e generosa. Foi dessa ligação entre os dois que surgiu a ideia de montar uma horta nos fundos da casa dos Nogueira. No sábado seguinte, reuniu todos: ela, Antônio, os patrões e até Igor. Dr. Pedro separava as mudas, Antônio e Igor se divertiam carregando os sacos de terra e adubo, enquanto Clara e Dona Isadora preparavam o solo. Estavam rindo e conversando quando Henrique apareceu no quintal. — Isso aqui tá com cara de trabalho forçado… — brincou ele. — Clara e Igor, vocês não querem processar esses dois por desvio de função? Sou advogado, posso ajudar! Todos caíram na risada, e ele foi até o grupo ajudar. Pegou uma pá e começou a cavar ao lado da mãe. Foi então que Dona Isadora o encarou com firmeza: — Você vai, não é? Henrique assentiu, limpando a testa com o braço. — Mãe… eu não vou deixá-lo sozinho. O semblante de Dona Isadora fechou, e Clara ficou sem entender. A única explicação plausível era Maurício. Só ele — fosse em presença ou menção — causava aquele clima estranho na casa. Mais tarde, todos almoçaram juntos. Os patrões fizeram questão de que Clara, Antônio e Igor se sentassem à mesa — afinal, era um sábado descontraído, e dr. Pedro não gostava de formalidades no dia a dia. Depois do almoço, Clara foi liberada, e Henrique se ofereceu para levá-la em casa com o filho. — Eu posso ir na frente? — perguntou Clara, já abrindo a porta do carona. — Não quero fazer o senhor de Uber. — Claro! — respondeu Henrique, rindo. — E olha… nenhum “senhor” vai dirigir hoje não. Só eu, um jovem jardineiro de fim de semana. Os três riram alto. Antônio já estava no banco de trás, entretido no celular. Clara sorriu e se acomodou no banco da frente. Com o carro em movimento, Henrique falou num tom mais sério: — Eu queria te agradecer pelo que tem feito pelos meus pais. Vejo como você cuida do meu pai com carinho e isso acalma minha mãe. Você e seu filho fizeram um bem danado pra essa casa. Obrigado mesmo. Clara ficou surpresa. Ele sempre havia sido cordial, mas nunca expressara gratidão de forma tão direta. Corou sem saber o que dizer. — Eu só… estou feliz por poder ajudar. Seus pais sempre foram muito generosos comigo e com o Antônio. Eu só retribuo. Houve um breve silêncio confortável. Então, Clara, com um olhar lateral discreto, arriscou: — Posso te perguntar uma coisa… mas não precisa responder se achar demais, ok? — Claro — respondeu ele, lançando-lhe um olhar curioso. — É que… percebi que sempre que o nome do Maurício surge, o ambiente pesa, porém ninguém fala a respeito. Existe algo que eu precise me preocupar em relação ao seus pais e ele? Henrique respirou fundo e assentiu com um sorriso contido. — É. Meus pais esperavam que ele seguisse a carreira jurídica comigo. Mas ele escolheu ser policial. Pra eles, foi como uma traição. Não precisa se preocupar com ele. É apenas uma briga de família. Clara apenas acenou, respeitando o limite da resposta. Henrique então completou, olhando rapidamente pelo retrovisor: — Amanhã ele recebe o título de Tenente no Grupo de Operações Especiais. Vou estar lá. Clara sorriu, sincera: — Parabéns a ele. Deve ser um orgulho. Henrique olhou para ela, e pela primeira vez, parecia que um pedaço do muro entre ele e o resto da família tinha se movido, mesmo que pouco. — É sim. Pra mim, é sim.