Escolher o que vestir já era uma tarefa complicada por si só — ainda mais quando o motivo era um jantar com o cara mais gato que ela já viu. Mas pensou que era melhor não se empolgar demais, afinal era só uma cortesia de alguém que na verdade era seu chefe.
Clara olhou para o guarda-roupa e pensou: “Vou com algo que me faça sentir confiante.” Optou por um vestido preto de mangas longas e decote quadrado, com comprimento um pouco acima dos joelhos. O ajuste moderado da peça favorecia seu corpo. Completou o visual com uma sandália alta de tiras pretas, brincos e pulseira dourados um pouco maiores do que costumava usar e, por fim, o colar de estrela que ganhou da mãe — aquele que nunca tirava do pescoço. Ainda bem que já havia tomado banho e secado o cabelo antes. Isso economizou um tempo precioso. Não queria deixar o doutor Henrique esperando… aliás, só Henrique, como ele havia pedido. Fez uma maquiagem discreta, o famoso “de bonita”: tons neutros para valorizar o que gostava e disfarçar o que não gostava. Quando se olhou no espelho, achou o resultado ok. Sua autoestima não era a mesma desde o divórcio e ainda por cima, tinha visto uma foto da ex-mulher de Henrique com a filha — uma mulher linda, que lembrava alguma atriz famosa. Quem eu estou tentando enganar? Pensou. Não se sentia nem próxima daquilo. A verdade é que, por mais gentis e carinhosas que fossem as conversas com Henrique, nunca percebeu nenhum sinal de interesse além da amizade. Mas de qualquer forma, sair era uma atividade que ela não fazia com frequência, mas que ao menos ela buscaria se divertir nessa rara ocasião. Cerca de 35 minutos depois, Clara saiu do quarto com tudo pronto. Levou consigo um blazer de tweed em tons de cinza, caso esfriasse. Assim que apareceu na sala, Henrique se levantou. — Podemos ir? — perguntou ela. Ele a olhou rapidamente ao se levantar, mas precisou olhar de novo. Tentou disfarçar o quanto a achou encantadora. — C-claro. Vamos… Você está linda. Clara corou na hora e sorriu. — Obrigada. Conversaram sobre assuntos leves no caminho e continuaram no mesmo tom já sentados à mesa do restaurante. Enquanto esperavam pelos pratos, Henrique sugeriu: — Quer escolher um vinho mais… alegre agora? — E o que você sugere? — Como nós dois pedimos massa com carne vermelha, um Cabernet Sauvignon seria uma boa escolha. Vamos pedir a sugestão para o sommelier. Normalmente dá certo. Quer tentar? Aceitaram a indicação e, após algumas taças, a conversa foi ganhando um tom mais íntimo. Henrique foi o primeiro a puxar assunto: — Você não é de Serra Alta, né? — Não. Nasci na capital, mas minha mãe era daqui. Cheguei a visitar a cidade quando era criança, enquanto minha avó ainda era viva, mas lembro muito pouco daquela época. — E por que decidiu morar aqui? — Porque levei um chifre. Henrique quase cuspiu o vinho de tanto rir. — O quê? — Não ri! — disse ela, rindo também. — Que história é essa? — É sério! Quando descobri, me divorciei. Precisava de um recomeço. Minha mãe falava com carinho sobre a infância e adolescência aqui. Achei que poderia ser um bom lugar pra recomeçar também. — Sua mãe faleceu? — Sim, quando eu tinha a idade do Antônio. Quem me criou foi minha avó materna. — Entendi… Então estar aqui é uma forma de se reconectar com suas raízes. — É exatamente assim que eu sinto. E você? Já morou em outros lugares? — Fiz intercâmbio em Londres e um tempinho em Paris, e estudei na capital durante a faculdade. Mas minhas raízes são daqui. — Serra Alta é engraçada. Às vezes parece grande como a capital, outras vezes é uma cidadezinha onde todo mundo se conhece. — E é isso que eu mais gosto. — Agora me diz… Estamos aqui tomando vinho, e quem vai dirigir? — Vamos de táxi na volta. O carro fica aqui até amanhã. Achou mesmo que eu ia vir a uma cantina e não tomar um vinhozinho? — Você está certíssimo. Jamais criticaria essa decisão. Quando os pratos chegaram, ambos já estavam mais relaxados. Clara, especialmente, estava mais falante. — Henrique, me conta uma coisa… é verdade que gêmeos quando pequenos têm uma linguagem só deles? — É verdade. Eu lembro que o Maurício falava todo enrolado, e eu era tipo o tradutor oficial dele quando a gente tinha uns dois anos. Era quase como uma língua só nossa. E temos apelidos que só usamos entre nós. — Quais? — Nem sempre usamos, mas eu chamo ele de Gago. E ele me chama de Rico. Clara começou a rir. — Rico? Faz sentido! — Ainda bem que só ele me chama assim. Nossos nomes não são bons pra apelido. Imagina: os irmãos Rico e Mauricinho? Seríamos alvo de bullying o tempo todo. — Meu Deus! Nunca tinha pensado nisso! — Sempre é preciso se antecipar aos inimigos. Ambos riram alto. No fim da noite, Henrique acompanhou Clara até seu apartamento. Ela estava um pouco mais alterada do que ele, e ele também não queria encerrar a noite tão cedo. Subiram as escadas rindo, meio cambaleantes. — Você quer entrar? — perguntou ela, ao abrir a porta. — Posso? Só quero usar o banheiro e pedir um carro. Clara assentiu. Enquanto ele ia ao banheiro, ela se sentou em um dos banquinhos do balcão e tirou as sandálias. Aguentou o salto bravamente até o fim, mas agora… já era. Henrique saiu do banheiro e se aproximou. — Acabei de pedir um carro. Muito obrigado pela noite, Clarinha. Você é uma companhia incrível. — Obrigada você — disse, com um sorriso sincero. — Foi muito gentil da sua parte me levar pra jantar. E prometo que não te chamo mais de doutor. Nem de senhor. Juro de dedinho. Ela se levantou e o abraçou. Seu rosto encostou no peito dele, num abraço desajeitado — mas estranhamente confortável. Como se esse fosse o movimento natural que deveriam seguir. Henrique retribuiu o abraço. Um abraço bêbado e sincero. Mas então Clara levantou a cabeça. Os rosto estavam frente a frente e os dois se olharam. Ele levou alguns segundos para recuperar o fôlego. Não esperava sentir o que sentiu. Por isso, simplesmente se despediu e saiu rápido, visivelmente sem jeito. Dentro do carro de aplicativo, pensou no quanto sua saída deve ter parecido estranha — talvez até rude. Mas ele não podia ficar ali, não com ela, não com o que ele estava sentindo. Queria beijá-la. Queria mesmo. Mas não podia. Assim que Henrique saiu, ela fechou a porta, se virou e encostou as costas na porta pensando: “E se fosse mais do que só amizade?”.