O carro cortava, rápido, a alameda ladeada por ciprestes, como um cortejo silencioso atravessando as sombras do passado. Glauco era o chefe do clã, o título este que não lhe fora entregue, ele o arrancou com os próprios punhos, num embate brutal com o irmão mais velho, Laerte. depois que este lhe tirou seu bem mais precioso: Sofia, sua mulher.
Cinco anos se passaram desde a tragédia que lhe abriu um vazio irremediável. E agora, ali estava ele, braços fortes, caminhar elegante e olhar endurecido pelos acontecimentos. Levava com ele uma desconhecida. Glauco parou o carro em frente à mansão. Antes mesmo que pudesse abrir a porta, um dos serviçais já estava a postos, aguardando ordens. — Chame Nice e peça para ela preparar um banho e o quarto do porão. Glauco disse, saindo do carro e caminhando em direção à porta traseira para retirar Amália, que ainda estava desmaiada no banco de trás. Quando Nice chegou para trabalhar na mansão Bergamo, Glauco tinha apenas cinco anos, ela o viu crescer. Ele tirou a jovem sob os olhares atônitos dos criados. — Vamos! Vocês não têm trabalho? Passou pelo grupo, seguido por Nice que acabara de chegar, junto dela estava Manoela, era a judante de Nice, desde que chegou na casa matinha sob segredo seu interesse por Glauco. — Encha a tina! Glauco ordenou, ao entrar no quarto escuro e pequeno. Teve que abaixar a cabeça para passar pela porta. — Vou buscar água quente. Disse Nice. — Não há necessidade, a água pode ser fria mesmo. Respondeu, aguardando com impaciência que a tina fosse enchida com os baldes trazidos um a um. Esperou até que houvesse água suficiente para a garota ficar submersa. Então se aproximou da tina e a colocou na água fria. Amália estava exausta. Sem dormir havia muitos dias e sem se alimentar, temia ser drogada. Seu corpo não aguentou. Desmaiou e caiu em sono profundo. A água fria encharcou a roupa fina, tocou seu rosto. Ela acordou apavorada, debatendo-se, tentando agarrar-se a algo. Suas mãos pequenas, mas ágeis, se agarraram ao colete de Glauco, molhando-o também, enquanto ele tentava tirar suas mãos. — Me solte! Ele rugiu, enquanto as criadas vinham ajudá-lo. Amália afundou várias vezes. Tossia e bebia água ao emergir. Agarrada à beira da tina, tentou se firmar, assustada, o coração aos pulos, lutando para recuperar o fôlego. Glauco a viu tremer. O tecido molhado colava-se ao corpo magro, deixando à mostra suas curvas e o quanto estava fraca. Ele era homem. É claro que a olhou com curiosidade. No leilão, sequer havia prestado atenção nela. Não era o que tinha ido buscar. Mas, ao ouvir seu gemido ao ser jogada ao chão e ao ver os homens se alvoroçando para comprá-la, resolveu acabar com a diversão deles. E arrematou a jovem. Ninguém esperava. Seu assistente achou uma loucura. Tentou dissuadi-lo. Mas Glauco, ao ver aqueles velhos espumando de raiva e impotência, sentiu um prazer inexplicável. Quando chegou ao porão e viu a pequena mulher acorrentada à parede daquele lugar, sentiu um pouco de pena. Ela estava encolhida, mas, tal qual uma gata arisca, o enfrentou quando ele se aproximou. Glauco voltou a si, desviando o olhar do corpo de Amália e indo em direção à porta do pequeno quarto. — Deem banho nela, arrumem uma roupa e deem comida. Ela vai dormir aqui esta noite. Naquele instante, todos no quarto pensaram: “Esta noite? E amanhã, onde ela dormirá? ” Pensaram, mas ninguém teve coragem de perguntar. Nem mesmo a pobre Amália, com os lábios arroxeados, a pele sensível doendo por causa da água fria. Mal conseguia sustentar o queixo. Antes de sair, Glauco lançou um último olhar. Os olhos azuis dela permaneciam fixos no chão. Não havia mais agressividade, apenas vazio. Assim que ele saiu, as mulheres a banharam. A mais jovem a olhava com rancor. A mais velha, com pena. Amália percebeu os olhares enquanto seguiam as ordens de Glauco. Vestida, sentou-se na cama e começou a secar os cabelos. O frio ainda a envolvia, mas era muito melhor do que estar mergulhada na tina. Ela não protestou. Queria aquele banho. Vestir roupas limpas, mesmo que num quarto estranho, era melhor do que ficar suja. Lembrou-se do vendedor de Salerno que tocara seu rosto com mãos ásperas e fedorentas de tabaco barato. No andar de cima, Glauco despia a camisa molhada. Esperava ansioso a ligação de Danilo. Ao desabotoar os punhos, sentiu ainda o toque dela agarrando sua roupa. Sob o chuveiro, a água quente caía sobre suas costas, mas o calor não afastava a lembrança de Sofia. Os olhos dela, sua voz, a maneira como sussurrava “Você devia ser o chefe do clã”. Enquanto Glauco se perdia nas lembranças... Nice levou um prato fumegante de sopa ao porão. Estava com pena da garota. Sabia pouco sobre ela, mas imaginava. Não fazia ideia dos planos de seu patrão para com ela, Glauco já não era o mesmo. Amália não tocou na comida. — Pode comer. Fui eu quem preparei. É nutritiva, não tenha medo. Disse Nice, ao ver o olhar desconfiado de Amália preso ao prato. — Não estou com fome. Obrigada. Respondeu, suave. Já ouvira histórias demais. Sabia o que vinham a fazer com garotas como ela. Sabia o que colocavam nas comidas para dopa-las e cometer os mais terriveis tipos de abusos. — Coma antes que esfrie. Você precisa se alimentar. Insistiu Nice. Mas, percebendo que a moça não mexeria na colher, decidiu deixá-la, sozinha, talvez longe de seus olhos ela resolvesse comer. Na suíte Glauco foi trazido de volta quando ouviu o celular vibrar sobre o móvel no quarto. Saiu do banho, olhou para o celular franzindo o cenho, trocou de roupa e desceu para a sala. "A joia não apareceu no leilão." Dizia a mensagem de Danilo. Nice quando passou pela sala, viu Glauco parado ao pé da escada. Na parede, o retrato de Sofia. Ele manteve o retrato da esposa, ali. Mesmo depois de tudo o que aconteceu. — Boa noite, senhor. Vai jantar? — Sim. Pode colocar a mesa para mim. A bondosa senhora se afastou, mas antes de chegar à cozinha, ouviu o chamado firme atrás de si. — Sim, senhor? A mulher voltou apressada. — Ela comeu? Ele perguntou enquanto caminhava em direção a adega. — Não, senhor. Parece assustada... o senhor sabe como é... — Entendi. Pode ir. Glauco terminou de colocar o vinho na taça, bebeu em único gole. Deixou a taça sobre o balcão olhando para a porta do corredor. Indiferente caminhou pelo corredor silencioso que levava ao porão. Amália ainda olhava para o prato. Sua boca salivava, o estômago roncava. A dúvida ainda lutava contra o medo, até que a porta se abriu bruscamente.