Mundo de ficçãoIniciar sessão
Marvila foi abandonada pelo namorado quando ele foi preso. Sem família que a amparasse e com a gravidez já avançada, mudou-se para uma cidade nova em busca de emprego. Passou algumas semanas em uma pensão barata até ficar sem dinheiro. Desempregada e tentando esconder a barriga debaixo de casacos largos, decidiu voltar para casa de ônibus e se humilhar diante da família do ex. Mas, naquela madrugada chuvosa, perdida pelas ruas, quase foi atropelada.
Dom, viúvo e solitário, dirigia sem destino certo, prestes a desistir da própria vida. Foi por um triz que não a atingiu. Ao vê-la trêmula e encharcada, ofereceu ajuda, quando soube que ela não tinha onde dormir, levou-a para sua casa e a resgatou do frio. Era uma noite triste, daquelas em que o vento parece trazer lembranças antigas pelo ar. Havia dias que a chuva não dava trégua, e Dom, imóvel diante da janela embaçada de sua mansão silenciosa no interior, passava horas observando as gotas escorrerem pelo vidro, como se cada uma carregasse um fragmento da dor que o consumia há algum tempo. Aquela data não era qualquer dia. Era o aniversário da morte de sua esposa, Ana Carolina. Negra, riso fácil, presença luminosa, ela fora sua razão e seu equilíbrio. Anos antes, ao descobrir que Dom a havia traído, ela tirou a própria vida. Desde então, ele nunca mais fora o mesmo. A perda o dilacerou de dentro para fora e, em vez de curar, o tempo apenas aprofundava o vazio e a culpa. Dom tinha 35 anos. Era um homem negro, de beleza discreta marcada agora pelo desalinho. A barba crescia sem cuidado, espessa e desalinhada. O cabelo, antes sempre bem aparado. Suas roupas, antes impecáveis e sociais, haviam sido substituídas por peças simples de academia, camisetas largas, calças de moletom, tênis gastos. Não por conforto, mas por indiferença. Já não se importava com aparências, nem com o mundo lá fora. Rico, sim. Solitário, mais ainda. A mansão onde se isolava parecia um mausoléu de memórias, cada cômodo impregnado de lembranças de Ana Carolina. A alegria que o tornava vaidoso e cheio de vida partira com ela, deixando um eco de arrependimento insuportável. Naquela noite chuvosa, diante da janela, Dom tomou uma decisão silenciosa sobre o próprio destino. Algo dentro dele dizia que não havia mais por que continuar. Sem filhos, afastado dos familiares, sem qualquer coisa que lhe desse alegria ou conforto, organizou documentos sobre a cama, numa pasta de plástico amarela, gesto de quem encerra um ciclo. Buscava, inutilmente, o conforto das boas lembranças: risos no café da manhã, jantares à luz de velas no quintal, planos de um futuro que nunca chegou. Enquanto dirigia pelas ruas desertas, com a chuva martelando o para-brisa, Dom pensava em desistir de vez. Foi então que, ao dobrar uma curva, algo chamou sua atenção, uma jovem loira, caminhando lentamente. Estava curvada, lutando contra a força da tempestade. Grávida, visivelmente exausta, braços encolhidos dentro de um casaco encharcado, uma mochila nas costas. Parava de tanto em tanto, como se cada passo fosse uma batalha. Por mais frio e rude que pudesse parecer, havia em Dom uma educação antiga que não lhe permitia ignorar alguém em apuros. Sem pensar duas vezes, deu a volta com a caminhonete e se aproximou, estacionou. O coração acelerou, não pelo trânsito, mas pela urgência estranha que aquela imagem lhe despertava. A moça parou com a mão na barriga, com os olhos semicerrados pela dor. Ele abriu a porta e correu até ela. — Olá, moça… você está bem? — perguntou, com a voz firme, carregada de preocupação. Ela o olhou e tentou responder entre uma contração e outra: — São só… contrações de treinamento… eu acho… — Tudo bem. Obrigada. Dom olhou em volta. A rua molhada, árvores vergadas pela ventania, ninguém por perto. — Quer uma carona? Entra no carro. Você não pode ficar aqui desse jeito. Ela hesitou, desconfiada, mas exausta demais para discutir. — Eu… não quero incomodar… Ia me abrigar ali e esperar a chuva passar. Ele alcançou a mochila com cuidado. — Não está incomodando. Vamos. Você precisa se aquecer. Não pode ficar doente, grávida. Marvila entregou a mochila e entrou com dificuldade, sentando-se com delicadeza. Dom a ajudou, fechou a porta e correu para o lado do motorista. Ela não perguntou nada, por um instante, sentiu-se segura. — Obrigada por parar… Eu ia na rodoviária. — O final da gestação é difícil.— respondeu ele, num tom baixo. Pela primeira vez em muito tempo, Dom sentiu algo diferente, um impulso de proteger, de cuidar, como se um fio de humanidade ainda resistisse debaixo das ruínas. — Vamos para minha casa. Você toma um banho, troca de roupa. Depois vemos o que fazer. Eu te levo aonde quiser. Marvila permaneceu em silêncio, tremendo de frio, abraçada à barriga. Ao chegarem, o portão automático se abriu e ele estacionou. — Você deu sorte. — disse. — Ninguém passa por lá, a essa hora. Marvila olhou ao redor, atenta e tímida. — Eu estava perdida. Não conheço nada aqui.






