Capítulo 3

Marvila parou de mastigar. Engoliu com dificuldade e pousou o garfo sobre a comida. Respirou fundo, como quem se prepara para abrir uma ferida.

— Ficamos juntos, por anos. — começou, com a voz baixa.

— Achei que ele mudaria. Que o amor podia consertar alguém. Mas ele só piorava. Bebia todos os dias. Me humilhava. Me machucava.

— Eu já perdi outro bebê, de tanto apanhar.

Dom ergueu os olhos, atento.

— Quando descobri que estava grávida... — ela continuou, com os olhos marejados.

— Ele surtou. Disse que eu o estava prendendo, que não queria ser pai. Tentou me bater... Disse que, se eu perdesse o bebê, seria melhor pra todo mundo.

Ela apertou os lábios, tentando conter o choro, mas não conseguiu. As lágrimas escorreram silenciosas, e ela as enxugou.

— Foi aí que eu fugi. Peguei o pouco que tinha e fui embora. Sem olhar pra trás. Eu só quero que meu filho nasça em paz. Longe dele. Longe de tudo.

— Vou trabalhar e dar um jeito.

Dom sentiu um aperto no peito. A dor dela era crua, real, e o fez lembrar da própria perda, da mulher que amava e que nunca mais voltaria, com o filho que um dia imaginaram, um sonho que se partira de forma irreparável. Mas havia algo diferente ali. Marvila não estava apenas na pior. Ela estava lutando, pelo filho.

Ele se levantou devagar, pegou uma manta dobrada sobre a cama e a colocou sobre os ombros dela com cuidado.

— Você não precisa passar por isso sozinha. — disse, com a voz firme, mas gentil.

— Aqui, você está segura. E eu vou te ajudar. Não nos encontramos por acaso.

Marvila olhou para ele, surpresa, como se não soubesse como reagir à bondade.

— Obrigada... — falou, com os olhos baixos.

Ele sorriu, indo em direção à porta:

— Agora termina de comer. Depois, descanse. Amanhã a gente vê o que fazer. Posso te levar ao médico, obstetra.

— A farmácia, talvez. Grávidas precisam de vitaminas, acompanhamento.

Ela assentiu, ainda emocionada, e voltou a comer em silêncio. Dom saiu do quarto devagar, deixando a porta entreaberta. No corredor, parou por um instante, respirando fundo. Algo dentro dele estava mudando. E ele sabia: aquela mulher não era apenas uma visita passageira. Ela era o motivo que o fazia não poder desistir. Pelo menos naquele dia.

Marvila terminou de comer em silêncio, limpando os olhos discretamente com a ponta dos dedos. O prato estava vazio, e o bebê começou a mexer, agitado, como se quisesse agradecer à refeição.

Ela esperou um pouco e saiu do quarto, levando a bandeja, quando passou pela sala, falou desconcertada:

— Obrigada, de verdade. Estava delicioso, o bebê gostou, ele se agitou muito. — disse ela, com a voz baixa.

Dom assentiu, levantando-se para pegar a bandeja.

— Fico contente. Amanhã irei ao mercado, a geladeira está vazia.

— Se precisar de qualquer coisa, é só chamar. Eu tenho sono leve.

— Meu quarto é perto do seu. Mas eu durmo na sala, quase todas as noites.

Ele foi para a cozinha, levando a bandeja até a pia. Ela ficou um pouco parada, em pé, observando-o, e retornou para o quarto, sem saber como se comportar na casa de um estranho.

Depois, Dom subiu para o quarto onde costumava ficar, mas não dormir. A casa era grande, cheia de cômodos que agora pareciam vazios demais. Cada porta fechada guardava uma memória, cada corredor ecoava o silêncio de uma vida que já não existia.

Ele observou a porta do quarto de Marvila, entreaberta, passou reto e foi deitar, pensando na sorte que ela teve. Deitou-se na cama, mas não conseguiu dormir. Ficou olhando para o teto, com os braços cruzados atrás da cabeça, enquanto a chuva continuava a cair lá fora. Nem trocou as roupas, achando que ela podia chamá-lo às pressas.

A ironia do destino o consumia. Sua esposa, Ana Carolina, tirou a própria vida ao descobrir que ele a havia traído, depois de anos de perdas e tentativas de formarem uma família. As lembranças o perseguiam, a ausência que levou tudo, a culpa que ficou. Enterrou sonhos no mesmo gesto e, desde então, carregava um luto que não sabia como abandonar.

E agora, ali estava ele. Ajudando uma mulher grávida, abandonada, fugindo de um passado violento. Uma mulher que carregava uma vida dentro de si, mas sem ninguém ao lado. E, ainda assim, ela queria aquele bebê.

Dom sentia que não podia simplesmente seguir com o plano que havia traçado para si. Não agora. Não com Marvila ali. Porque o pior poderia acontecer, ele começou a pensar, reflexivo:

“Talvez eu possa deixá-la com um bom dinheiro. Uma das minhas casas, para ter segurança. Tudo o que ela precisa para começar de novo. E depois... depois eu sigo com o que tinha decidido.”

Mas, mesmo enquanto pensava nisso, algo dentro dele resistia, receio de ela ser ingênua e perder o que ganhasse. Como se a presença de Marvila tivesse acendido uma luz tênue em meio à escuridão que ele habitava há anos. Ele não tinha herdeiros diretos. Sua família tinha boas condições, seus sobrinhos eram estudados, todos bem criados. Seus irmãos tinham as próprias coisas, comércios, casas de aluguel.

Ele virou-se na cama, inquieto. O som da chuva parecia mais suave agora. E, pela primeira vez em muito tempo, Dom não se sentia completamente sozinho. Esperou ansioso pelo amanhecer, queria saber se Marvila tivera mais contrações.

O sol ainda mal havia tocado as janelas da casa quando Marvila se levantou, curiosa e apreensiva. A casa estava silenciosa, envolta por aquele tipo de paz que só existe na madrugada. Ela caminhou descalça até a cozinha, com os cabelos bagunçados, a roupa amassada. Estava faminta, com a barriga roncando.

Tomou água e começou a limpar a cozinha, lavando a louça, um gesto de gratidão. Mesmo com medo, abriu a geladeira, encontrou uma panela com o resto do arroz do jantar e, sem pensar muito, pegou uma colher e começou a comer ali mesmo, em pé, com o olhar atento à porta, como se estivesse cometendo um delito.

Dom havia acordado pouco depois, tomou banho. Vestiu-se com a mesma simplicidade de sempre, calça de moletom, camiseta escura lisa, e foi direto ao quarto de hóspedes. Queria ver como Marvila estava, se havia dormido bem, se precisava de algo. Mas, ao abrir a porta, encontrou o quarto vazio.

Franziu a testa e saiu à procura dela pela casa. Ao chegar à cozinha, parou na porta, a observando em silêncio.

Marvila estava ali, com a panela na mão, comendo deliciosamente o arroz gelado puro, ficou com os olhos arregalados ao perceber que havia sido flagrada.

— Me desculpa... — disse ela com a boca cheia, largando a panela de imediato.

— Eu estava com fome... não queria incomodar...

Dom se aproximou, sem qualquer sinal de reprovação. Começou a rir, surpreso.

— Você pode ficar à vontade. Essa casa é grande demais pra continuar vazia. — disse, com um tom divertido.

— E, pra ser sincero, não tem quase nada aqui. Eu vou ao mercado daqui a pouco. Vamos encher essa geladeira.

— Afinal, você ficará hospedada aqui. Coma, pode comer.

Marvila sorriu, tímida, ainda constrangida, pegando a panela novamente.

— Eu agradeço... mas não quero abusar da sua hospitalidade. Hoje, eu vou embora. Já fiquei demais.

Dom a olhou por um momento, pensativo, enquanto colocava a água para ferver. Havia algo nela que o tocava profundamente, talvez a força disfarçada de fragilidade, talvez o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, ele se sentia útil.

— Olha, ninguém da emprego a uma grávida.

— Você não quer... um emprego? — perguntou, com naturalidade.

— Minha casa precisa de alguém. Alguém que cuide, que mantenha tudo em ordem.

— Você poderia ficar. Trabalhar aqui. Ter um lugar seguro.

— Claro, quando se recuperar do nascimento. Posso pagar um salário mínimo, te dar moradia e alimentação, sem descontar nada.

Marvila ficou em silêncio, surpresa. Seus olhos se encheram de uma mistura de alívio e medo. Era uma oferta generosa, mas também inesperada. Ela abaixou o olhar, pensativa.

— Eu... não sei o que dizer, Dom. É muita responsabilidade.

Dom deu um leve sorriso, colocando o pó no coador de café.

— Diz que vai pensar. Eu gosto, de crianças.

— E come direito. Não precisa se esconder pra isso. Tudo o que tiver aqui, você pode comer.

— Menos café, né? Sabe que não pode?

Ela riu, ainda tímida, e foi sentar-se à mesa.

— Não sei nada disso. Que vergonha.

Pela primeira vez em muito tempo, sentiu que talvez o mundo estivesse lhe dando uma chance. E pôde ser notada como uma gestante normal. Ela achou graça do quanto ele dava atenção a isso e, mesmo sem admitir, se sentiu menos sozinha.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App