A noite ainda parecia pairar sobre mim, mesmo depois que atravessei a porta de casa. O corredor da boate, o olhar de Marcos, a tensão com Gabriel… tudo isso ainda estava gravado em cada músculo, cada lembrança do toque invisível de poder e ameaça.
Mas a manhã chegou, implacável, lembrando-me que a vida continuava fora daqueles corredores escuros. Acordei com a claridade tímida atravessando as cortinas do quarto. Por um instante, desejei virar para o lado e dormir mais, mas o peso da realidade não me deixava. O corpo pesava; cada músculo parecia gritar pela noite anterior. Levantei-me devagar, sentindo o frio do chão sob os pés. O espelho do banheiro refletiu uma versão cansada de mim. Olhos claros, iguais aos da mãe, com olheiras profundas. Ela sempre dizia que eles tinham um brilho especial. Agora, tudo o que eu via era cansaço acumulado. Escovei os dentes. Meu cabelo estava desgrenhado, pouco abaixo dos ombros, tom castanho claro. A semelhança com minha mãe era ao mesmo tempo conforto e lembrança amarga. Saí do banheiro e atravessei a pequena sala. Meu pai dormia no sofá, braço caído, garrafa vazia no chão. Latas de cerveja rolavam pelo tapete. Suspirei, recolhendo-as com cuidado, hábito antigo que me deixava exausta. Enquanto levava as latas para a cozinha, a máquina de lavar funcionava ao fundo. O barulho monótono se misturava aos meus pensamentos. Peguei a frigideira, quebrei um ovo, a água do café fervia, e separei uma fatia de pão. Era tudo simples, mas suficiente para me manter de pé. Peguei o celular, buscando distração. Uma notificação piscava: Mensagem de Clara. Um sorriso escapou sem perceber. Nora: Quando você volta? Clara: Daqui a três dias, ainda aproveitando a mãe no interior. Por quê, já está com saudades? 😂 Nora: Estou sim. A boate sem você parece duas vezes mais sufocante. Clara: Dois dias fora e você já reclama. Exagerada! Quando eu voltar, vamos dar uma volta, comprar umas coisinhas, que tal? Mordi o lábio, hesitando. Comprar? Não podia me dar esse luxo. Cada centavo precisava ir para dívidas, contas, comida. Mas Clara sempre conseguia arrancar um sorriso mesmo quando tudo parecia pesado demais. Nora: Não sei se posso, mas… tudo bem. Vou abrir uma exceção. Clara: Isso! Preciso te arrancar desse buraco às vezes. Já combinei: quando eu voltar, vamos direto para o shopping. Ri sozinha, balançando a cabeça. Clara era meu ponto de apoio desde o primeiro mês na boate. Diferente das outras, nunca me olhou com desprezo ou competitividade. Ela conseguia tornar aquele lugar menos cruel, quase respirável. Guardei o celular, soltando um suspiro profundo. Voltei para a sala e olhei para meu pai mais uma vez. Ele se remexeu, murmurando algo incompreensível. A cada noite, parecia mais distante, perdido no próprio mundo. Aproximei-me, tocando de leve seu ombro. — Pai… vai para o quarto. Ele abriu os olhos lentamente, vermelhos e pesados. — Estou bem aqui… — Não está. — Cruzei os braços, tentando manter firmeza. — Anda, levanta. Ele resmungou, mas se ergueu devagar, apoiando-se no braço do sofá. O cheiro de álcool me invadiu. O coração apertou, mas mantive o tom duro. Enquanto ele sumia pelo corredor, sabia que eu continuaria pagando, de certa forma, pelos erros que não eram meus. A sensação era sufocante. Sozinha novamente, sentei no sofá, fechando os olhos. O silêncio parecia gritar mais alto do que qualquer som da boate. Cada memória, cada responsabilidade, cada cobrança se empilhava, e eu me perguntava quantas noites mais teria que suportar até conseguir respirar aliviada. A raiva e a exaustão se misturavam, mas também havia algo dentro de mim que se recusava a quebrar. Uma centelha de resistência que ninguém poderia apagar. Ali, naquela sala silenciosa, cercada por tudo que precisava enfrentar sozinha, percebi que ainda havia uma escolha: lutar ou sucumbir. E, naquele momento, decidi que lutaria, mesmo cansada.