MAVI NARRANDO
Quando percebi… Um ano e seis meses. Foi o tempo que o mundo levou pra esquecer que eu existia. Ali dentro da boate “La Notte”, os dias não passavam. Eles simplesmente se repetiam. A música alta, os homens com os olhos cheios de fome, as meninas andando com corpos gastos e sorrisos de vidro. A maioria delas não lembrava nem o próprio nome. E as que lembravam fingiam não lembrar, porque era menos doloroso assim. Eu nunca me vendi. Nunca deixei tocarem em mim — não de verdade. Era uma regra silenciosa que pairava sobre mim desde aquela primeira noite. “Nada de escândalo”, eles diziam. “Sirva no bar. Seja discreta. Não cruze limites.” E eu segui a ordem como quem se agarra à última beirada do abismo. Vi meninas chegarem, enlouquecerem, sumirem. Eu estava entre elas, mas não fazia parte delas. Mantive minha lucidez porque precisava dela. Pra lembrar das minhas filhas. Das risadas que eu nunca ouvi, dos nomes que bordei com as mãos tremendo de amor e esperança. Alyssar. Alice. Eu repetia os nomes todas as noites, como se fossem orações. Como se aquilo fosse me impedir de esquecer o som que elas nunca fizeram. Vittorio Morelli. O nome dele era um sussurro pesado pelos corredores. Um nome que assustava até os seguranças mais frios. Eu só o vi duas vezes em todos aqueles meses. A primeira foi naquela noite em que acordei dopada, com o zumbido nos ouvidos e ele me encarando com olhos frios. A segunda, meses depois, de longe — ele atravessava o salão com um grupo de homens de terno, indo em direção a uma das salas VIP. Ninguém falava com ele. Ninguém tocava nele. Ele era um lobo em meio a cordeiros sujos de vinho e perfume barato. Eu era só uma sombra ali dentro. Invisível. Intocável e ao mesmo tempo presa. Naquela noite, como tantas outras, eu estava atrás do balcão. — Cerveja? — perguntei a um homem careca, com uma corrente de ouro grossa no pescoço e o sorriso sujo. Ele assentiu, mas em vez de esperar, deu a volta no balcão. Me encurralou entre os armários de garrafa e o freezer antigo. O cheiro dele era enjoativo, doce demais, misturado com álcool e puro nojo. — Você tem cara de quem precisa de carinho — ele disse, a mão deslizando pelo meu braço. Agarrei o pulso dele com força. — Tira a mão — falei baixo, firme, com os olhos cravados nos dele. Ele riu, achando graça, mas o riso morreu quando sentiu meus dedos pressionando o ponto exato pra doer. — Eu não sou dessas. E você não vai querer que eu prove isso na frente dos seguranças — sussurrei, com uma raiva gelada na boca. Ele recuou, rindo sem graça, e saiu. Uma das dançarinas viu de longe, e balançou a cabeça. — Você ainda não entendeu, né, boneca? Aqui dentro, ou você se vende… ou te vendem. — Então que tentem — respondi, voltando pro balcão. Porque vender minha dignidade seria admitir que ele venceu. O homem que arrancou minhas filhas de mim. Que fez o mundo acreditar que elas nunca existiram. As tentativas de fuga? Foram várias. Na primeira vez, eu me escondi dentro de um caminhão de mantimentos. Descobriram antes do portão principal. Apanhei tanto que fiquei três dias sem conseguir levantar da cama. Na segunda, tentei fugir pela saída de emergência. Trancada. Sempre estava. Na terceira, me aliei a uma das novas — uma menina russa, olhos claros, corpo de modelo. Ela tinha um plano. Um segurança com quem ela “negociava”. Ele ia deixá-la sair numa entrega, e eu iria junto. Naquela noite, ela desapareceu. Só disseram que “foi transferida”. Eu entendi o recado. E sabe oque era mas incrível ? Era proibido comentários sobre minhas surras , ninguém falava . Não havia saída. Só sobrevida. No quarto onde eu dormia, agora havia seis beliches. Doze meninas dividindo um ar mofado e lençóis suados. Algumas vendidas, outras esperando o dia de serem. Duas delas se ofereciam até pra seguranças em troca de comida melhor. Eu as via voltando sorrindo de madrugada, cheias de marcas e sem alma. Eu dormia no canto, no colchão mais fino. Todas sabiam que eu era “intocável”. Ninguém ousava mexer comigo. Mas também não falavam comigo. Pra elas, eu era uma espécie de maldição. A mulher que não cedia, que não se dobrava, que ainda olhava pra porta como se tivesse esperança. Naquela noite, tudo começou igual. Trabalho no bar. Olhares engolindo. Homens pedindo mais do que bebida. Música que batia como soco. Mas algo no ar estava diferente. Um burburinho entre os seguranças. Um vai-e-vem estranho nos corredores. Quando cheguei no quarto, cansada, sentei na cama, abracei os joelhos e fechei os olhos. As outras meninas já estavam espalhadas, algumas dormindo, outras rindo baixo. Foi quando a porta abriu com força. A loira platinada entrou. Saltos altos, batom vermelho, cara de tédio eterno. — Você. Levanta — disse, apontando pra mim. — Por quê? Ela deu um sorriso cínico. — Sua ficha mudou. Nova designação. Nova função. — Que tipo de função? Ela caminhou até mim, os olhos brilhando com desprezo. — Vai trabalhar na mansão. — Mansão? — É. Do chefe. — Chefe? Ela arqueou uma sobrancelha, como se fosse óbvio. — Morelli. Você vai trabalhar na mansão Morelli.