MAVI NARRANDO
O mundo não me preparou pra perder minhas filhas. Nem pra lidar com a traição de quem eu mais amava. Mas naquele dia, quando vi o nome dele aceso na tela do celular – Heitor – tudo voltou à tona. Era uma localização. Um lugar qualquer no centro, uma espécie de galpão ou estúdio abandonado. Nenhuma mensagem. Só o ponto no mapa, como se fosse um convite mudo. Mas eu entendi o recado. Ele estava vivo. E se estava vivo, elas também podiam estar. Saí sem avisar minha mãe. Sem pensar duas vezes. Peguei o casaco, o pingente das meninas preso no pescoço e enfiei a coragem no bolso, junto da raiva. Eu ia até ele. Ia olhar nos olhos daquele desgraçado e arrancar a verdade, nem que fosse à base de grito. O local era frio, úmido, com cheiro de mofo e óleo velho. A porta estava entreaberta. Entrei. — Heitor? — chamei, com a garganta travada. — Aparece. Aonde você colocou as meninas? O silêncio respondeu primeiro. Depois, passos. Ele surgiu da penumbra com um sorriso frio e os olhos escuros, como se nunca tivesse me amado. — Mavi… você veio. — Onde elas estão?! — explodi, sentindo a raiva ferver sob a pele. — Que merda você fez com nossas filhas? Ele riu. Riu como quem já sabia que eu não teria saída. — Você ainda não entendeu, né? Elas nunca foram suas. — Como assim?! — Elas eram mercadoria, Mavi. Nada mais. Eu só precisei do seu corpo pra gerar o que o mercado queria. E você… — ele se aproximou, tocando meu rosto — …foi a incubadora perfeita. Cuspi no chão, entre nós dois. — Você é doente. Ele deu de ombros, e antes que eu conseguisse recuar, senti a picada. Uma agulha. Um ardor. — O que você fez…? — minhas pernas cederam. O teto girava, o mundo se apagava. — Desgraçado… Tudo escureceu ali. Acordei com um zumbido nos ouvidos e a cabeça latejando. A boca seca, os braços pesados, o corpo ainda grogue. O gosto de metal na língua me dizia que eu tinha sido dopada, e as memórias embaralhadas só confirmavam isso. Mas nada me preparou pra visão que tive ao abrir os olhos. Um homem. Sentado diante de mim, observando em silêncio. Devia ter uns cinquenta e poucos anos. Cabelos brancos, curtos, bem penteados. A barba por fazer deixava o rosto ainda mais marcado, mais duro. Usava um terno escuro, e os olhos… os olhos eram frios. Claros e distantes, como se carregassem o peso de várias vidas que ele mesmo tivesse encerrado. Ficamos alguns segundos nos encarando. Trocamos poucas palavras. Frias. Secas. Ele queria saber como eu tinha parado ali. Disse que meu nome não estava entre as pessoas que deveriam ter sido enviadas. Que aquilo era um erro. Um desvio. Algo fora dos planos. E eu… eu só conseguia pensar em como tudo aquilo parecia maior do que eu. — Levante-se. Você vai ser realocada. — Realocada? — repeti, com a voz rouca. — Onde eu tô? Quem são vocês? Ele não respondeu. Apenas me entregou uma roupa simples e apontou pra porta. — Troque-se. Rápido. Tem gente esperando. Vesti a roupa com dificuldade. Meu corpo ainda parecia fora do meu controle, mas a cabeça estava firme. Fui levada por corredores silenciosos. Câmeras nas paredes. Portas de ferro. Tudo vigiado. Vi outras mulheres ali. Algumas dopadas. Outras com olhos vazios. Ninguém falava. Entramos numa van escura. E quando as portas se abriram de novo… eu entendi. Luzes vermelhas. Música grave. O som abafado de vozes masculinas. Uma boate. A placa na entrada dizia “La Notte”. Meu estômago revirou. Fui empurrada pra dentro pelos seguranças, direto até uma sala nos fundos. Uma mulher magra, loira platinada, me olhou com tédio e desprezo. — Essa é a nova? — perguntou. — Ordens do chefe. Não é pra tocar nela. Nem botar no palco. — E onde ela vai? — Recepção. Bar. Vista controlada. A mulher me olhou de cima a baixo. — Tem cara de quem já quebrou antes. Vai servir. Pelo menos não vai dar escândalo. Engoli a resposta amarga. Fiquei ali parada, observando os rostos, os olhares, as meninas dançando com movimentos mecânicos… E então caiu a ficha. Eu tinha sido vendida. Igual às minhas filhas. Fui enfiada num sistema. Num esquema sujo que comercializava corpos, como se fossem carne. Minha respiração acelerou, mas eu forcei os pés no chão. Não podia desmoronar. Não ali. Não na frente deles. Não depois de tudo. Me levaram pra um quarto pequeno, com cama, espelho e câmera no teto. Disseram que seria “temporário”. Que “o chefe” ainda não tinha decidido o que faria comigo. O chefe. Não diziam o nome dele, mas os olhares falavam por si. Era alguém que todos temiam. Que controlava aquele lugar com silêncio e comando. Que podia decidir se uma mulher viveria… ou seria descartada como lixo. Fiquei no quarto por horas. Ou talvez dias. Difícil dizer. A luz nunca mudava. A comida vinha fria, sempre pela mão de uma mulher de expressão vazia. Eu comia pouco. Dormia menos ainda. Passei a maior parte do tempo de pé, colada à parede, ouvindo os passos do corredor, as conversas abafadas do lado de fora. Um nome começou a se repetir nas bocas: Vittorio. Não diziam com intimidade. Era mais como um aviso. Um alerta. Um nome que vinha seguido de silêncio ou de olhares para os lados. Vittorio. O chefe. Aquele homem de olhos frios. Pelo jeito, ele era mais do que um homem qualquer. Mais do que um dono de boate. Havia poder demais em torno do nome. E mesmo assim, eu não conseguia parar de pensar na forma como ele me olhou. Não como um predador. Nem como um cliente. Mas como se tentasse entender. Como se quisesse quebrar meu silêncio antes que eu quebrasse o dele. Eu fingia calma, mas meu cérebro corria a mil. Analisando rotas de fuga, pontos cegos, câmeras, revezamentos dos seguranças. Qualquer brecha. Um segurança entrou, seguido da mulher platinada. Ela trazia uma bandeja com roupas novas — um vestido simples, preto, e uma maquiagem leve. — Você vai pro salão hoje. Não como dançarina. Só pra circular. No bar. Não respondi. — É ordem direta do chefe. Engoli a raiva. Engoli o medo. Vesti o vestido. Olhei meu reflexo no espelho pela primeira vez em dias e quase não me reconheci. Havia sombra nos meus olhos. Um ar de sobrevivente. De alguém que não esperava salvação de ninguém. Eles me levaram até a entrada do salão. Luzes vermelhas. Música grave. Homens rindo. Mulheres dançando como bonecas que esqueceram quem eram. — Fique no bar. Sirva. Observe. E lembre-se: nada de escândalo. Quando percebi… Já se passaram pouco mas de um ano.