Mundo de ficçãoIniciar sessãoO café da manhã estava servido na mesa ampla da cobertura. Pães, frutas, queijos e café fumegante preparados por funcionários que já haviam partido discretamente. Rose analisava a disposição dos pratos, distraída, quando Pedro surgiu pelo corredor, de camiseta branca e calça jeans, os cabelos ainda úmidos do banho.
— Finalmente acordou cedo — disse ela, sem levantar os olhos da prancheta. — Não tão cedo quanto você gostaria, imagino — respondeu ele, servindo-se de café. — Achei que hoje me daria uma trégua. — Não existe trégua quando sua vida está em risco. Pedro se recostou na cadeira, sorrindo de canto. — Você tem prazer em me lembrar disso, não é? — Prazer eu teria se você colaborasse. — Rose pegou uma fatia de pão e passou manteiga com calma. — Assim eu não precisaria repetir a mesma coisa todos os dias. Ele a observou, intrigado. Rose era rígida, disciplinada, mas havia algo no jeito como franzia a testa ao se concentrar que arrancava dele uma vontade estranha de provocá-la. — Sabe, você deveria relaxar um pouco — disse ele, mordendo uma maçã. — Não é saudável viver com esse semblante de sargento. Rose ergueu os olhos, séria. — Você deveria sobreviver um pouco. Não é saudável viver se destruindo. Pedro gargalhou, a primeira risada verdadeira em muito tempo. O som ecoou pelo salão, surpreendendo até a si mesmo. — Você é terrível, Almeida. — E você é previsível. — Ela bebeu um gole de café, impassível. — Por isso nunca ganha. — Nunca ganho? — Pedro arqueou a sobrancelha. — Ontem quase te derrubei. — Quase não conta. — Rose apoiou os cotovelos na mesa. — No tatame e na vida, só existe vitória quando se mantém de pé no final. Pedro balançou a cabeça, ainda rindo. — Se continuar assim, vai acabar sendo minha terapeuta também. — Cobro caro por hora extra. Ele riu outra vez, quase cuspindo o café. O jeito seco dela, misturado à seriedade que não cedia, começava a parecer divertido em vez de irritante. — Nunca pensei que fosse rir com você, Almeida. — Aproveite, porque não acontece sempre. Os dois se encararam, e por um breve momento, a tensão que costumava pesar entre eles se transformou em algo mais leve. Não era guerra. Não era apenas treinamento. Era um começo estranho de convivência. Rose abaixou os olhos para os papéis, voltando ao foco. — Hoje vamos treinar de novo. Pedro gemeu, fingindo desespero. — Vai me matar antes dos inimigos. — Não. — Ela sorriu de canto, quase imperceptível. — Vou te manter vivo, mesmo contra a sua vontade. Pedro a observou em silêncio, e a risada que ainda lhe escapava se misturou a uma sensação nova, incômoda e viciante: talvez, pela primeira vez, estivesse gostando da presença dela. O salão de treino estava iluminado pela luz cinzenta da manhã. O piso refletia o brilho frio das janelas, e o ar tinha aquele cheiro de madeira e suor que já se tornava familiar. Pedro entrou primeiro, ainda reclamando. — Acho que vou abrir uma denúncia contra você. Isso já passou de guarda-costas para abuso psicológico. Rose apareceu atrás dele, ajeitando as ataduras nos punhos. — Abuso psicológico é te deixar continuar vivendo como estava. Eu chamo isso de salvação. — Interessante definição de salvação. — Pedro ergueu as mãos num gesto dramático. — Então eu deveria te agradecer? Rose o encarou com seriedade, mas o canto da boca traiu um quase sorriso. — Agradecer não. Demonstrar na prática. — Ah, ótimo. — Ele assumiu posição, exageradamente desajeitado, como se fosse um aluno iniciante. — Mestre Rose, estou pronto para apanhar. Ela riu, baixinho, sem conseguir se conter. Foi rápido, mas real. — Você é impossível. — E você sorriu. — Pedro apontou, vitorioso. — Anotem nos registros: Rose Almeida, a muralha de gelo, sorriu durante um treino. Ela revirou os olhos, mas a leveza no ambiente não se quebrou. — Concentre-se antes que eu me arrependa. O treino começou. Diferente dos dias anteriores, Pedro parecia mais disposto, menos resistente. Errava, tropeçava, mas aceitava as correções sem reclamar tanto. Cada vez que Rose tocava seus braços, empurrava seus ombros ou ajustava sua postura, ele não explodia em sarcasmo — apenas soltava comentários irônicos que arrancavam dela uma paciência quase divertida. — Se alguém me ver nessa posição ridícula, minha reputação acaba. — Ele tentou bloquear um soco, falhou, e quase caiu. — A sua reputação já acabou faz tempo. — Rose segurou-o firme, impedindo a queda. — Estou apenas tentando salvar o que sobrou. Pedro riu, ofegante. — Você tem resposta pra tudo, não é? — É o mínimo para lidar com você. As respirações pesadas se misturavam, os corpos próximos demais em cada correção. Mas, diferente do treino anterior, o clima estava menos incendiário, mais… cúmplice. Como se, pela primeira vez, ambos estivessem na mesma sintonia. Pedro tentou repetir o movimento que Rose havia mostrado, mas acabou girando o quadril de maneira tão desengonçada que perdeu o equilíbrio e caiu sentado outra vez. — Excelente técnica de autodestruição — disse Rose, estendendo a mão para ajudá-lo a levantar. — Se continuar assim, seus inimigos vão morrer… de rir. Pedro gargalhou, sem se importar com a crítica. — Pelo menos eu sou criativo. Quem mais consegue transformar um treino em comédia? — Criativo e desastrado. Péssima combinação. — Rose puxou-o com força, e ele se levantou cambaleando. — Fique firme, ou vou ter que colocar rodinhas em você. Ele passou a mão pelos cabelos suados, fingindo indignação. — Você está se divertindo às minhas custas, não está? — Finalmente percebeu. — Rose deu um meio sorriso. — Admito que é mais interessante do que ouvir você reclamar. Pedro riu outra vez, apoiando as mãos nos joelhos. — Cuidado, Almeida. Se continuar sorrindo assim, vou começar a achar que você gosta da minha companhia. Ela cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha. — Gosto da sua melhora. Do resto, ainda tenho dúvidas. Ele se aproximou, estreitando o olhar de propósito. — Então, no fundo, já tenho um ponto a meu favor. Rose o empurrou de leve pelo peito, afastando-o. — Um ponto. Contra mil falhas. Pedro ergueu as mãos em rendição, rindo alto. — Já é um começo. O riso ecoou pelo salão, quebrando o peso que costumava pairar entre eles. Era como se, por alguns minutos, o treino tivesse deixado de ser obrigação e virado algo próximo de parceria. Após meia hora, Pedro caiu sentado no chão, rindo. — Chega, Almeida. Estou oficialmente derrotado. Rose ofereceu a mão, puxando-o de volta. O contato foi rápido, firme, mas Pedro não soltou de imediato. Ela arqueou a sobrancelha, e ele disfarçou com outra piada. — Você é mais forte do que parece. — Você é mais fraco do que aparenta. — Rose soltou sua mão, mas havia calor no olhar. — Isso me preocupa. Pedro riu novamente, passando a toalha no rosto. — Se continuar assim, vou acabar gostando dos treinos. — Essa é a ideia. Ficaram em silêncio por alguns segundos, apenas respirando. O silêncio, dessa vez, não era pesado nem sufocante. Era confortável. Pedro olhou para ela e sorriu. — Entre ordens e provocações, você começa a ficar… suportável. Rose cruzou os braços, mas não conseguiu disfarçar o brilho nos olhos. — Não se acostume, Nascer. Mas, no fundo, ambos sabiam: estavam se acostumando.






