Se você acha que viajar para Veneza é sinônimo de romance, gondoleiros cantando e eu sorrindo com uma taça de vinho, parabéns: sua imaginação é patrocinada pela indústria do cinema. A minha experiência foi um pouco diferente. Digamos… planilhas, investidores, um inglês técnico cheio de siglas e a sensação constante de que eu estava vendendo não só a minha empresa, mas também minha alma em suaves prestações.
E o mais irônico? Veneza era meu sonho de adolescência. Eu só não tinha previsto que o realizaria assim: sozinha, exausta, e tentando impressionar um grupo de homens engravatados que não sabiam pronunciar “Luna Navarro” sem transformar meu sobrenome em um novo dialeto.
Três dias inteiros de reuniões, apresentações e jantares corporativos em que eu sorria tanto que minha bochecha já estava prestes a pedir demissão. No hotel, minhas noites eram divididas entre relatórios intermináveis e a companhia nada sexy do café frio da recepção.
Até que, naquela noite, tudo mudou.
A culpa, claro, foi da Mariana. Minha melhor amiga, sócia e autoproclamada coach de vida.
— Você deveria sair. Nem que seja só para respirar algo diferente de ar-condicionado e ansiedade, — ela tinha dito por chamada de vídeo, direto de São Paulo, enquanto tomava chá no escritório. — Luna, você tá em Veneza! Pelo amor de Deus, vai viver um pouco. Ninguém lembra da planilha que você apresentou, mas todo mundo lembra da vez que se perdeu em uma rua estreita com cheiro de pizza.
Ela sempre exagerava, mas tinha razão. Por isso, quando um dos anfitriões do evento sugeriu um restaurante “para poucos”, escondido em alguma viela fora do circuito turístico, eu aceitei. Era isso ou enlouquecer no quarto do hotel revisando pela milésima vez os números do fluxo de caixa.
Caminhei pelas ruas estreitas sentindo o cheiro de maresia misturado ao de pão recém-assado vindo das janelas abertas. Em cima, lençóis brancos pendurados em varais balançavam com o vento, como se até eles vivessem melhor que eu. Me perguntei se era romântico ou só o caos logístico de morar em uma cidade que flutua.
O restaurante ficava atrás de uma porta de madeira escura, com a tinta descascada e uma lanterna antiga que piscava como se estivesse prestes a desistir. Lá dentro, paredes de pedra, toalhas bordadas, castiçais de ferro e um violino tocando baixinho em algum canto. Tudo parecia saído de um filme de época, um filme em que eu claramente estava com a roupa errada.
E então eu o vi.
Encostado no balcão, de costas para a luz. Alto. Barba por fazer. Cabelos negros perfeitamente desalinhados, como se tivesse demorado vinte minutos para deixá-los no ponto exato do “acordei assim”. Ombros largos sob um terno escuro que parecia caro demais para aquele cenário. Ele parecia não pertencer ali. Parecia não pertencer a lugar nenhum, na verdade. E talvez esse fosse o problema: homens assim não pertencem, eles dominam.
Meu olhar ficou preso nele antes mesmo de a minha mente gritar “perigo!”. E, claro, foi nesse exato instante que o garçom decidiu me conduzir direto para o balcão. Perfeito. Nada como ser pega encarando um desconhecido como uma adolescente que acabou de descobrir séries coreanas.
Ele me viu. E quando nossos olhares se encontraram, o restaurante inteiro pareceu silenciar.
— Se for vinho tinto, escolha o da casa. O branco deles é amargo demais. — A voz veio baixa, segura, em português… com um sotaque leve, quase imperceptível, que soou como promessa e alerta ao mesmo tempo.
Sorri de lado, tentando disfarçar o nervosismo.
— Só quando elas parecem precisar de uma desculpa para quebrar as próprias regras.
Eu ri. E, pela primeira vez em dias, foi um riso genuíno.
Sentamos lado a lado. Ele pediu vinho tinto, eu pedi ravioli (porque o estômago estava no modo greve de fome forçada).
— Você sempre janta sozinho? — perguntei, em tom leve.
— Só quando vale a pena. — O olhar dele se prendeu ao meu por tempo suficiente para me fazer esquecer o cardápio. — E hoje vale.
— Como pode ter tanta certeza? — provoquei.
Ele sorriu de canto, como quem já sabe o resultado do jogo.
E foi assim: conversamos sobre Veneza, sobre música, sobre vinho… mas também havia outra conversa acontecendo, sem palavras. A cada olhar, a cada pausa longa demais, o subtexto era mais forte do que qualquer diálogo.
Não me pergunte como aconteceu. Mas, quando percebi, já estávamos no meu hotel.
O quarto parecia outro universo. Não havia mais violino, nem garçons, nem taças de vinho. Só o som abafado da porta se fechando atrás de nós e a respiração dele, próxima demais, aquecendo minha pele.
Fiquei parada, observando-o como quem encara um perigo irresistível. Alto, ombros largos, presença que preenchia cada centímetro do espaço. A camisa escura aberta no primeiro botão revelava um traço de pele bronzeada. Os olhos, escuros e intensos, me analisavam como se fossem predadores decidindo o melhor momento para atacar.
Ele não perguntou nada. Não sorriu. Apenas me olhou como se soubesse que eu iria até ele. E fui mesmo.
Soltei os sapatos devagar, mas antes que pudesse dar o segundo passo, ele encurtou a distância e tomou posse do espaço entre nós. Segurou meu rosto, os dedos firmes no meu queixo, me obrigando a encará-lo. Então me beijou. Sem aviso, deslizou sua língua na minha, preenchendo minha boca. Seu hálito quente de vinho me deixando meio zonza. Um beijo profundo, que me fez esquecer como respirar.
Senti o peso dele contra o meu corpo, a dureza inconfundível pressionando meu abdômen, e meu corpo reagiu antes que minha mente processasse. Ele me ergueu com facilidade, minhas pernas se encaixaram automaticamente em volta do quadril dele. O contato arrancou de mim um arrepio inteiro.
Fui deitada no colchão, e em um segundo meus pulsos estavam presos acima da cabeça, só para que eu soubesse que ele podia. As mãos dele deslizavam firmes pela lateral do meu corpo, subindo meu vestido sem cerimônia.
— Você é minha essa noite — murmurou contra minha boca, a voz grave, quase um comando.
Não havia espaço para dúvidas.
Horas depois, exausta e entregue, ouvi a voz dele perto do meu ombro:
Sorri de olhos entreabertos.
Ele riu, baixo, um som que parecia quebrar alguma barreira dentro dele.
E dormimos. Juntos. Como se não fôssemos dois estranhos.
Quando acordei, ele já não estava mais ali. O travesseiro ainda tinha a marca da cabeça dele, os lençóis estavam amassados, o quarto silencioso demais. Nenhum bilhete. Nenhuma pista. Apenas o cheiro dele no ar, perfume amadeirado, couro e tabaco.
E então vi a pequena mancha no chão.
Perto da poltrona onde ele jogara o paletó: uma gota seca de sangue.
Meu coração disparou. Toquei com os dedos, sentindo a textura áspera. Ele havia ido embora rápido. Talvez às pressas. Talvez ferido.
Encostei na parede, fechei os olhos e respirei fundo. Tentei lembrar se ele parecia ferido, mas tudo estava borrado pelo vinho e pelo desejo.
Apesar de não saber praticamente nada sobre aquele homem, uma certeza me dominava: algo nele era perigoso.
Olhei pela janela. A cidade acordava devagar, os canais encobertos por uma névoa dourada.
Mas dentro de mim, algo já tinha mudado.
E eu ainda não fazia ideia do quanto.