Três semanas se passaram desde Veneza. Três longas, silenciosas, irritantemente confusas semanas.
Voltar para São Paulo foi como mergulhar de novo na mesma rotina sufocante de sempre: trânsito infernal, compromissos que se multiplicam sozinhos, e-mails que parecem brotar como praga. Eu sempre tive a impressão de que vivia atrasada para alguma coisa. Mas, dessa vez, havia algo diferente. Um peso constante. Um incômodo que não me deixava em paz, como uma pedra no sapato, só que no estômago.
O desaparecimento dele depois daquela noite não ajudava. Eu não esperava nada, nem número de telefone, nem bilhete, nem um emoji perdido no W******p. Mas, ao mesmo tempo… talvez eu esperasse. A ausência dele me deixou confusa. Talvez fosse só curiosidade. Ou talvez fosse meu corpo tentando me avisar de algo que minha mente, teimosa, se recusava a entender.
Naquela noite, o som dos teclados ecoava pela sala de vidro como se fosse parte de uma tortura medieval. Todo mundo já tinha ido embora, menos eu e Vanessa. Ela revisava um relatório como se o destino da humanidade dependesse de cada vírgula. Eu fingia trabalhar, mas, na prática, só adiava encarar a verdade que meu corpo já estava gritando.
— Luna, você tá péssima. — A voz da Vanessa me fez levantar os olhos da tela.
— É o ar-condicionado. — Tentei brincar. — Esse prédio foi projetado pra manter pinguins felizes.
Ela não riu. Nem uma micro-expressão. Vanessa me olhou como quem já sabia a resposta e só estava esperando que eu confirmasse.
— Você não almoçou hoje. Nem ontem. No café da manhã, encostou na xícara e não bebeu nada. Desde que voltou da Itália, parece que tá fugindo de alguma coisa. E não é só cansaço.
Suspirei e me recostei na cadeira.
— É muita pressão, Van. O investimento, as reuniões… minha cabeça não para.
— Eu entendo. — Ela fechou o relatório, virou-se de frente para mim. — Mas pressão não explica porque você tá suando frio aqui dentro e porque seu rosto muda quando eu falo de comida.
E foi nesse exato instante que meu estômago decidiu me sabotar. Uma náusea súbita, violenta, subiu como uma onda. Levei a mão à boca.
— Dá licença…
Corri para o banheiro, e mal tive tempo de fechar a porta antes de me ajoelhar diante do vaso. Meu estômago se contraiu em espasmos que pareciam castigo divino. O gosto amargo queimou minha garganta.
— Luna? — A voz de Vanessa soou logo atrás, preocupada. — Você tá assim há dias, né?
— Deve ter sido alguma coisa que eu comi… — murmurei, tentando parecer racional enquanto segurava a porcelana como se fosse um colete salva-vidas.
Ela entrou, se agachou ao meu lado e passou a mão nas minhas costas num gesto que me deu mais vergonha do que conforto. Depois de alguns minutos, se afastou, cruzou os braços e me encarou.
— Isso não é comida estragada. — O tom dela era o de quem dá uma sentença. — Isso tem nome, sobrenome… e pode até ter CPF, se você fizer o teste.
— Não exagera… — forcei um sorriso fraco. — Eu só devo estar cansada.
— Cansaço não faz o estômago doer, nem o humor virar uma montanha-russa. Faz o teste, Luna.
Lavei o rosto, mas o espelho não mentiu: pele pálida, olheiras profundas, um olhar que gritava "você sabe a verdade".
— Não tem como — murmurei, balançando a cabeça. — Foi só uma noite. Eu tomei cuidado… eu acho.
— Você acha? — Vanessa ergueu uma sobrancelha.
Fechei os olhos, tentando buscar memórias que vinham em flashes do que tinha acontecido aquela noite.
— Eu estava bêbada, Van. Só lembro da pegada dele… e de como me olhou.
— Você pelo menos sabe o nome dele?
O silêncio foi minha confissão. Meu rosto queimou de vergonha.
— Não.
Ela respirou fundo, e mesmo assim manteve o olhar firme.
— Faz o teste.
Saí do banheiro sem responder. Mas as palavras ficaram ali, latejando como um tambor dentro da minha cabeça.
Faz o teste. Faz o teste. Faz o teste.
No caminho de casa, decidi passar na farmácia. Peguei dois testes. Dois. Porque, aparentemente, sou o tipo de pessoa que precisa de redundância até para lidar com a própria vida desmoronando.
Cheguei em casa, larguei as chaves no balcão, e o pacote da farmácia parecia me encarar. Uma bomba-relógio embrulhada em plástico transparente. Abri com as mãos trêmulas.
No banheiro, segui o protocolo. Depois, me sentei na tampa fechada do vaso. O coração batia tão alto que abafava o silêncio.
Esperei.
Duas linhas. Vermelhas. Definitivas.
Meu estômago se fechou. Peguei o segundo teste. Fiz de novo. Esperei.
Duas linhas. Iguais. Inquestionáveis.
Eu sabia o que significava. E sabia, também, que minha vida não seria mais a mesma.
Me sentei no chão frio, encolhida, como se o azulejo pudesse me dar uma resposta. As lágrimas vieram sem alarde. Não eram de desespero. Nem de alegria. Eram de quem entende, no fundo, que acabou de atravessar uma porta que não se pode fechar.
Fechei os olhos. A imagem dele veio inteira, nítida demais. O maxilar marcado. Os olhos escuros que pareciam me ler por dentro. O calor do seu corpo sobre o meu. O cheiro. O gosto.
Uma única noite.
“Você não vai me perguntar meu nome?”
A voz dele soou tão viva na minha memória que me arrepiei. E agora, tudo o que eu queria era ter perguntado o bendito nome.
Eu não sabia seu nome. Não sabia de onde ele vinha. Não sabia se estava vivo. Mas sabia, sem sombra de dúvida, que ele fazia parte de mim agora. Para sempre.
Me levantei, lavei o rosto e encarei o espelho. Não era mais a mesma mulher que tinha entrado no banheiro minutos antes. Estava com medo, sim. Mas também havia algo diferente.
Se eu já tinha enfrentado o mundo como mulher jovem, desacreditada, que construiu cada degrau com as próprias mãos, enfrentaria também como mãe. Mesmo que sozinha. Mesmo sem todas as respostas.
Peguei os dois testes e os coloquei dentro de uma caixinha de joias vazia. Guardei no fundo da gaveta, como se pudesse esconder de mim mesma. Mas, no fundo, eu sabia: não por muito tempo.