Na manhã seguinte, o céu de Valenhart Manor amanhece em cinza.
Não o cinza suave de um dia nublado, mas o tipo de cinza que parece pesar sobre os ombros, o que antecede uma tempestade ou um desastre.
Do meu quarto, observo o jardim pela janela. As flores estão inclinadas, quase reverentes, e o vento parece sussurrar o nome da casa como se ela tivesse alma.
Valenhart Manor sempre teve. E nunca foi gentil.
A noite anterior ainda pulsa dentro de mim. O encontro, o olhar de Adrien e o som do quadro rachando.
Tento convencer a mim mesma de que foi coincidência, que a casa não passa de uma estrutura velha demais, cheia de vento e histórias inventadas. Mas há algo que me impede de acreditar nisso. Talvez o modo como o ar ficou gelado quando ele me chamou pelo nome.
Talvez o modo como meu corpo reagiu, traidor, como se o tempo tivesse voltado e eu ainda fosse aquela garota que acreditava em promessas.
Tomo café sozinha no salão lateral. A porcelana fina ecoa quando coloco a xícara de volta no pires. O som parece amplificado por cada parede.
Estou tentando ignorar o envelope de cera negra sobre a mesa.
O advogado disse que era para os herdeiros.
Os herdeiros somos nós.
Eu e Adrien.
E a ideia de dividir qualquer coisa com ele, até o ar, me causa enjoo.
O relógio da parede marca dez horas quando os passos dele soam no corredor.
Não preciso olhar. O som das passadas dele é algo que o corpo reconhece mesmo depois de uma década. Ele para na porta e encosta o ombro no batente, as mãos nos bolsos, o olhar preguiçoso que ele usa quando quer disfarçar que está em alerta.
— A casa está igual — ele diz, como quem fala sozinho. — Apenas mais fria.
— A frieza sempre foi a parte que você mais apreciou.
Ele solta um riso baixo, sem humor.
O silêncio que se instala é denso. Não é confortável, mas familiar.
Adrien se aproxima da mesa, pega o envelope e o analisa.
— O selo está intacto.
— E vai continuar assim.
— Lendo ou não, a carta é parte do testamento.
— E eu não tenho pressa para reabrir feridas.
Ele puxa a cadeira à minha frente e se senta. O gesto é calmo demais, ensaiado demais.
— Não são feridas, Lívia. São obrigações.
— O que você entende de obrigação, Adrien? — minha voz sai mais fria do que pretendia. — Você sempre escolheu o que era mais conveniente. Inclusive quando...
Paro. A lembrança ainda é um nó na garganta.
— Quando o quê? — ele insiste.
Olho para ele. O mesmo rosto, mas com mais sombras agora. Linhas discretas nos cantos dos olhos, a barba um pouco mais cerrada. E os mesmos lábios que um dia me disseram que o amor podia curar qualquer coisa.
Mentira bonita.
— Nada que valha repetir — digo, enfim.
Adrien solta o ar e rasga o envelope. O som do lacre quebrando parece ecoar como um trovão.
Dentro, há uma carta escrita à mão, em tinta azul-escura, letra antiga, firme, inconfundível.
“Aos herdeiros Valenhart,
O sangue que sustenta nossa casa carrega promessas feitas e jamais cumpridas.
Cumpram o juramento que eu não consegui cumprir.
Se o amor ainda existe, ele os salvará.
Henri Valenhart.”
A última linha está borrada. Como se alguém tivesse passado o dedo sobre a tinta antes que secasse.
Adrien a lê em voz alta, com expressão de quem tenta não demonstrar espanto.
— Amor, juramento e salvação... — ele murmura. — O velho enlouqueceu antes de morrer.
— Ou sabia mais do que dizia — rebato. — Ele sempre soube.
— Sabe o que me irrita em você, Lívia?
— A lista é longa. Escolha um item.
— Esse seu hábito de acreditar em fantasmas quando o problema é humano.
Ele se inclina sobre a mesa, e o perfume dele me atinge: amadeirado, familiar, devastador.
Por um segundo, a lembrança de nós dois se impõe. A voz dele prometendo futuro, o toque dele na minha nuca, o gosto do vinho e do pecado.
Afasto o pensamento como quem empurra um abismo.
— O problema sempre foi humano, Adrien. E o nome dele era Henri Valenhart.
— Ele te deu tudo o que tinha.
— Ele me tirou tudo o que eu era.
O olhar dele muda, só por um instante. Culpa, talvez. Ou apenas cansaço.
— Você nunca entendeu — ele diz baixo. — Eu também perdi.
— Não. Você escolheu perder. Há uma diferença.
Antes que ele possa responder, tia Helen surge na porta, envolta num perfume pesado de gardênia.
— O advogado volta amanhã com as instruções da coabitação — anuncia, satisfeita. — Vocês terão tempo para se… reacostumar um ao outro.
Adrien cerra os dentes.
— Isso é um absurdo.
— É o testamento, querido. O patriarca foi muito claro: ou convivem pacificamente, ou renunciam à herança.
— E se eu preferir a paz? — pergunto.
Ela sorri com doçura venenosa.
— Paz é para quem não tem contas a pagar, minha querida.
Quando ela se afasta, o silêncio volta.
Adrien passa as mãos pelo rosto, cansado.
— Você pode ir embora, se quiser. Eu resolvo com o advogado.
— E deixar você fingindo que é o herdeiro ideal? Não.
— Então o que sugere?
Olho para a carta sobre a mesa, o selo quebrado, a caligrafia perfeita e cruel.
— Que a gente descubra o que ele realmente queria antes que essa casa engula a gente como engoliu os outros.
— Você ainda acha que a mansão tem vontade própria.
— Acho que ela tem fome.
Ele se levanta e me encara. Por um segundo, penso que vai rir. Mas não ri.
— Está bem — diz, com voz baixa. — Se é para sobreviver, faremos isso do seu jeito.
— Ótimo. Então comece não me dando ordens.
— Difícil, considerando que você sempre odiou ser contrariada.
— E você sempre precisou controlar tudo o que ama, Adrien. Talvez por isso perca tão fácil.
Os olhos dele se estreitam. A tensão entre nós é palpável, elétrica.
Por um momento, o ar da sala muda, fica denso, quente, quase vivo. As velas na lareira tremulam, e o estalar da madeira quebra o silêncio.
— Cuidado, Lívia — ele sussurra. — Às vezes, quem provoca incêndios se esquece de que também pode se queimar.
— E às vezes quem apaga esquece que o fogo é a única coisa que ilumina.
Nossos olhares se cruzam, e o tempo volta a girar naquele mesmo eixo perigoso de sempre.
Por um segundo, tudo o que existiu volta a existir: o amor, a raiva, o desejo, a dor.
Adrien é o pecado que aprendi a reconhecer à distância. O problema é que, agora, estamos presos no mesmo inferno.
Ele sai do salão e deixa a carta sobre a mesa.
Pego o envelope vazio e sinto algo cair: um grão fino, negro, quase poeira.
Quando o seguro entre os dedos, o ar ao meu redor esfria.
Olho mais de perto.
Não é cinza. É areia escura, quase metálica.
E há um cheiro leve de ferro, como sangue.
A casa estala.
Uma porta b**e em algum corredor.
E o relógio da parede, que nunca funcionou desde a morte do meu pai, começa a marcar o tempo novamente.
Tic. Tac. Tic. Tac.
Respiro fundo.
A mansão acordou.
E ela não parece feliz.
Quando olho de novo para a carta, há uma nova linha escrita no rodapé, que antes não estava ali.
Em caligrafia idêntica à de Henri Valenhart:
“O coração cobrará o que lhe foi roubado.”