As palavras ainda me queimam quando entro no salão dos retratos, que sempre foi o coração da casa. Hoje, ele parece respirar de novo. Cada quadro tem olhos, cada sombra parece observar.
Ando devagar entre as molduras, tentando não pensar no barulho das prateleiras que se moveram sozinhas na biblioteca nem na voz feminina que juraria ter ouvido sussurrar meu nome.
As mãos estão frias. O coração, quente demais.
Quando passo diante do espelho oval, o reflexo vibra, como se tivesse vida própria.
A superfície se distorce, e o vidro, líquido, começa a pulsar.
Dou um passo para trás, mas o ar muda, pesado, espesso, e o mundo parece virar de dentro pra fora.
Não há mais vento. Nem chão. Nem tempo.
Há apenas a memória, e ela me puxa como se tivesse mãos.
10 anos antes…
Chove.
O som da chuva contra o vitral da capela é a única coisa que ainda existe.
Eu estou parada diante do altar, vestida de branco.
O vestido é leve demais para o frio que faz, e o tecido gruda na pele como segunda ferida.
Meu véu está encharcado, e meus olhos também.
Adrien está à minha frente, encharcado também, mas não por lágrimas.
Ele segura os punhos cerrados, o rosto endurecido em uma raiva que eu não reconheço.
Atrás dele, Selene, impecável, intocada, com o sorriso exato de quem sabe que venceu.
— Não ouse dizer que me ama, Lívia. — A voz dele é uma lâmina fria. — Não depois do que você fez.
— Eu não fiz nada. — O som da minha própria voz me rasga. — Me ouve, por favor.
Ele dá um passo, o suficiente para que o chão estale entre nós.
— Já ouvi o suficiente. O que você quer agora? Piedade? Um novo perdão?
— Eu quero que acredite em mim.
Ele ri. Um riso quebrado, amargo.
— Acreditei uma vez. Foi o suficiente para perder tudo.
— Você não sabe de nada.
— Eu tenho provas! — Ele aponta para Selene. — Ela me contou tudo.
Sinto o chão vacilar. Selene é minha melhor amiga. O que ela poderia ter contado ao meu futuro marido que o deixaria assim?
— Eu não trai você.
— É o que todo culpado diz.
Eu me aproximo, desesperada, e a ponta do véu roça os sapatos dele.
— Adrien, eu te amo. — A frase sai antes que eu possa pensar. — Sempre te amei.
Ele fecha os olhos. Por um segundo, o rosto dele se contorce, e eu vejo o homem que conheci. O homem que me beijava na galeria, que dizia que eu era a única parte da casa que ainda tinha luz.
Mas o segundo passa.
E o que fica é a raiva.
— Amor? — ele repete. — Amor não destrói famílias.
— O seu avô me disse para... — começo, mas ele ergue a mão, calando-me.
— Não culpe o velho pelos seus pecados.
Atrás dele, Selene dá um passo à frente.
— Ela sempre foi boa em lágrimas — diz com suavidade venenosa. — Mas você sempre foi cego demais pra ver.
Adrien a ignora, mas não me defende.
O silêncio dele é a pior das condenações.
Eu sinto o frio do vitral nas costas.
A luz entra como um corte fino, tingindo o branco do meu vestido com vermelho.
Chove mais forte.
— Por favor — repito. — Me ouve.
Ele dá um passo para trás.
— Já ouvi o suficiente.
E então ele diz o que nenhum homem deveria dizer à mulher que ama:
— Prefiro morrer a ficar perto de você outra vez.
O som que escapa de mim não é humano. É um soluço, um grito, um coração se partindo em voz alta.
Ele vira as costas, e quando o faz, uma das velas do altar apaga sozinha.
O vento entra pela janela quebrada e o véu se ergue, como se quisesse segui-lo.
Selene o acompanha, e antes de sair, olha para mim por cima do ombro.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Eu cuido dele agora.
E então vai embora.
Fico ali, sozinha, com o som da chuva e da minha respiração falhando.
O vitral atrás de mim trinca, me chamando a atenção para a inscrição: O coração cobrará o que lhe foi roubado.
Dias atuais…
Respiro, e o mundo volta.
O salão está inteiro de novo.
Mas minhas mãos tremem.
Atrás de mim, o relógio toca onze badaladas.
O som é o mesmo de dez anos atrás.
— Eu não deveria ter voltado — murmuro, olhando para o espelho.