Acordo com o som da chuva batendo nas janelas. Por um instante, não sei onde estou. A cama parece maior do que deveria e o lençol frio demais. Demoro alguns segundos até perceber o que está errado: não estou em minha casa.
Percebo que o sofá está vazio. Adrien não está no quarto. Sento-me devagar, os cabelos caindo sobre o rosto. O relógio antigo marca três e quinze da manhã. O ar da mansão tem aquele cheiro particular de madeira cara e lembranças guardadas por tempo demais. A lua invade o quarto através da janela, prateando os contornos da mobília, como se quisesse provar que ainda há luz mesmo nas ruínas. Mas não há descanso. Não para mim. E, pelo jeito, não para ele. Visto o robe, sem acender nenhuma luz, e caminho pelos corredores. O chão range sob meus pés, denunciando minha presença, como se a casa tivesse prazer em me entregar. A biblioteca fica no final do corredor leste, o mesmo lugar onde eu e Adrien costumávamos nos esconder para escapar das festas da família. Lá, onde ele me beijou pela primeira vez. Lá, onde o mundo parecia mais simples. Antes que as mentiras começassem. Empurro a porta com cuidado. O cheiro de livros antigos me invade como uma lembrança física. Há uma lareira apagada, poltronas de couro e uma escrivaninha de carvalho escuro coberta por pilhas de papéis e objetos que pertenciam a Henri Valenhart. Ouço o tic-tac distante de um relógio de bolso esquecido. O som me acompanha enquanto me aproximo da mesa. Entre as folhas espalhadas, um volume de capa gasta me chama atenção. O couro está ressecado e o fecho está quebrado. No centro, em letras douradas quase apagadas:Lucien Valenhart.
O fundador.
Abro com cuidado. As páginas exalam mofo e tinta antiga. Há manchas escuras, respingos secos que poderiam ser cera de vela… ou sangue. Os registros misturam contabilidade com anotações pessoais: alianças, casamentos arranjados, comentários sobre “linhagem” e “juramentos antigos”. Nada que explique o que aconteceu com nossa família, mas tudo o que a define. Continuo folheando até encontrar uma página destacada, marcada por um pedaço de fita vermelha. As palavras estão em francês arcaico, mas a tradução é clara o suficiente para me gelar o sangue:“Tudo o que é prometido ao ouro, o coração cobra em sangue.”
Fico olhando a frase por longos segundos.
O som da chuva se mistura ao estalo leve do piso. Penso que é o vento, até ouvir outro ruído, um ranger diferente, ritmado. Passos. Alguém está aqui. — Adrien? — chamo, baixo. Silêncio. Sinto o corpo inteiro ficar alerta. O corredor está às escuras, e o ar parece mais frio do que antes. Dou um passo em direção à porta, mas o chão range novamente, agora atrás de mim. Viro rápido, o coração disparado. Nada. Apenas os livros, a escrivaninha e o som da minha própria respiração. Suspiro, tentando rir de mim mesma, quando o diário escorrega da minha mão e cai aberto no chão. Uma folha solta desliza por baixo da mesa. Ajoelho para pegá-la. É uma carta. Antiga, selada com cera preta e o mesmo brasão que vi na carta anterior: a rosa atravessada pela adaga. Aperto o envelope nas mãos, o coração pulsando no mesmo ritmo do relógio. Por que o patriarca esconderia algo assim no diário do próprio antepassado? E é nesse exato momento que alguém fala atrás de mim: — Não consegue dormir? Dou um pulo, o grito preso na garganta. Adrien está na porta, encostado ao batente, o corpo iluminado pela luz pálida do corredor. A camisa branca está aberta no colarinho, revelando a pele bronzeada e o colar discreto que ele nunca tirava. Parece o mesmo homem e, ao mesmo tempo, outro, mais cansado, mais real, mais perigoso. — Droga, Adrien! — Levo a mão ao peito. — Quer me matar de susto? — Eu bati. — Ele dá um meio sorriso. — Mas você estava… concentrada. — Mexendo em coisas que não são suas? — ele acrescenta, andando até mim. — Não são suas também. Ele para ao meu lado, inclina-se e recolhe o diário. Os dedos tocam os meus por um segundo, e é o suficiente para o calor se espalhar. — O diário de Lucien. — ele murmura. — Não sabia que ainda existia. — Estava na escrivaninha do seu avô. Entre papéis e segredos. — Então o lugar é apropriado. — Ele se endireita, folheando o livro. — A família sempre preferiu guardar verdades em gavetas trancadas. — Algumas gavetas se abrem sozinhas. Ele levanta o olhar. — Isso é um aviso? — Uma constatação. Os olhos dele brilham, como se reconhecessem o desafio. — Cuidado, Lívia. Você sempre foi boa em abrir o que não devia. — E você sempre foi bom em trancar o que não queria encarar. Por um instante, não existe diário, nem carta, nem passado. Existe só o ar entre nós. Tenso, elétrico, quase vivo. Aquela sensação perigosa de que basta um movimento errado para o mundo inteiro incendiar. Eu recuo, tentando respirar. Ele observa cada gesto, cada hesitação. Parece saber o efeito que causa e se alimentar disso. — O que é isso? — pergunto, tentando desviar o foco. Adrien pega a carta da minha mão. — O selo é o mesmo da anterior. Quer abrir? — Claro. — Respondo rápido demais. Ele rasga o lacre com o polegar. O som seco ecoa na biblioteca. O papel dentro é fino, quase translúcido. As letras, perfeitas, firmes, e mais antigas que o próprio tempo.“Ao herdeiro de Valenhart e à sua prometida:
Que nunca se esqueçam do Juramento da Noite. O sangue deve pagar o que o amor desafia. Prometi à mulher sem nome, de olhos de escuro mar, que nossa linhagem prosperaria, contanto que nenhum descendente entregasse o coração por completo. Se o fizesse, o ouro se tornaria pó e o nome, maldição.”Lucien Valenhart
Termino a leitura e encaro Adrien.
Ele parece pronto para rir. — Então é isso? Uma lenda de família? Um pacto moral? — Não parece moral. — digo, ainda sem fôlego. — Parece uma condenação. — Ou uma ferramenta útil para manter herdeiros obedientes. — Ele j**a o papel sobre a mesa. — A maldição perfeita: amar se torna pecado, e o dinheiro é a absolvição. — Você fala como se não acreditasse em nada. — Eu acredito em fatos, não em fantasmas. — Às vezes os fantasmas são só verdades que você evita olhar. Ele se aproxima um pouco mais. — E o que exatamente você vê quando olha pra mim? — Depende. — digo, a voz mais baixa do que eu gostaria. — O homem que me amou, ou o que me condenou? A pergunta fica no ar, entre nós, como uma corda esticada. Ele não responde. Mas o olhar dele, o cinza tempestuoso, o mesmo de sempre, diz tudo. Dou um passo para trás. — Vou catalogar as cartas. Cruzar as datas, as referências. Talvez o diário esconda mais. — Ainda tão metódica. — Ele sorri, sem humor. — Sempre achou que tudo se resolve com lógica. — E você ainda acha que tudo se resolve fingindo que não sente nada. Ele ri, baixo. — E o que você acha que eu sinto agora? — Raiva. — respondo, firme. — Errado. — Ele se aproxima, encurtando o espaço até o ar esquentar. — Eu sinto tudo o que passei dez anos tentando esquecer. O mundo para. O som da chuva desaparece. Há só ele, o calor, a lembrança, e o toque que não acontece, mas ameaça o tempo inteiro. E então ele faz o que sempre faz quando estamos prestes a cruzar a linha: recua. — Boa sorte com seus fantasmas, Lívia. — diz, pegando o diário. — Mas se achar outra carta, não abra sozinha. — Por quê? Tem medo que eu descubra algo que você não quer encarar? Ele lança um olhar lento, perigoso. — Tenho medo que você acredite no que lê. Sai antes que eu responda, deixando o perfume e o eco das palavras pairando no ar. Quando ele desaparece no corredor, olho para a carta aberta sobre a mesa. O selo rachado parece um ferimento. No verso, algo riscado a tinta quase invisível:“O amor é a verdadeira heresia.”
Sento à escrivaninha, copiando as frases, organizando os fragmentos.
Chove lá fora, e o som é o mesmo de dez anos atrás. E pela primeira vez desde que voltei, tenho certeza de que não foi a herança nem só a vingança que me trouxe de volta. Foi o que o coração ainda cobra e ele nunca esquece o que lhe foi roubado.