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Capítulo 7 – O Jantar das Aparências

A manhã nasce cinza e silenciosa. A chuva da madrugada se foi, mas o ar continua pesado, como se a casa ainda respirasse o que aconteceu na noite anterior.

O sofá ao meu lado está intacto. Nenhum vestígio dele.

A ausência de Adrien tem cheiro, textura e ruído, o tipo de vazio que só existe quando se sabe exatamente o que falta.

Encontro um bilhete sobre a escrivaninha, escrito à mão, no papel timbrado da família:

“Reunião às dez. Jantar às oito. Use algo que combine com reconciliações.”

Nenhuma assinatura. Ele nunca precisou se despedir para me deixar.

O resto do dia passa como um borrão de compromissos que não me pertencem.

Funcionários entram e saem, trazendo tecidos, flores e instruções.

Tia Helen circula como uma anfitriã que acredita reger o destino.

— O jantar precisa parecer íntimo, querida — diz, segurando um colar de pérolas contra meu pescoço. — Advogados são criaturas visuais. Precisam ver que vocês… se gostam.

— E se não gostarmos? — pergunto, sem emoção.

— Então finjam melhor. — O sorriso dela é uma faca envolta em seda.

Fecho a porta assim que ela sai e encaro meu reflexo no espelho.

O vestido que escolheram, vinho profundo, com alças finas e costas nuas, não é uma escolha, é uma armadura.

Minha pele reflete a luz dourada, o cabelo solto escorre sobre os ombros, e, por um segundo, reconheço a mulher que prometi nunca mais ser: a que ainda quer ser olhada por ele.

Ouço passos firmes no corredor.

Adrien aparece sem anunciar-se, como sempre.

O terno preto o veste como uma confissão de poder.

— Já está pronta. — diz, sem pergunta, os olhos percorrendo minha silhueta de cima a baixo.

— Não me lembro de ter te dado permissão para entrar.

— Nem eu, mas entre nós nunca funcionou assim.

O olhar dele é tão direto que o ar se torna denso.

Por um instante, o silêncio entre nós é o mesmo de antes do primeiro beijo, aquele que carrega promessas e ameaças.

— O jantar é às oito — ele retoma, afastando-se um passo. — Helen quer que pareçamos... reconciliados.

— E desde quando você se importa com a opinião dela?

— Desde que ela segura a caneta que define a herança.

Pego a bolsa, tentando ignorar o coração acelerado.

— Então finjamos. — digo. — Somos bons nisso.

A sala de jantar está iluminada por lustres e segredos.

O brilho das taças reflete sorrisos forçados.

Helen preside a cabeceira, Selene ainda não chegou, mas o nome dela paira sobre a mesa como um fantasma.

Advogados, assessores, parentes distantes.

Todos observam como se esperassem uma peça encenada e nós, os atores que voltaram de um escândalo.

Adrien se senta ao meu lado.

Por fora, somos perfeitos.

Por dentro, o caos pulsa.

Sinto o toque dele sob a mesa, discreto e calculado.

Os dedos dele alcançam os meus e se fecham num gesto firme, ensaiado.

É parte do espetáculo, eu sei.

Mas o toque é quente demais para ser fingimento.

Meu corpo reage antes da mente.

A descarga elétrica atravessa os dois como uma lembrança que arde.

— Sorria — ele sussurra, sem olhar para mim. — Eles estão observando.

— Então não me provoque.

— Quem disse que é provocação?

Tento soltar a mão, mas ele aperta um pouco mais.

O gesto é uma disputa travestida de carinho.

E eu odeio o quanto ainda quero perder.

— Um brinde! — anuncia Helen, erguendo a taça.

Todos repetem o movimento.

— Ao legado Valenhart. À continuidade da família e ao amor que, mesmo testado, prevalece.

O ar parece se envenenar.

A palavra amor dita por aquela mulher soa como blasfêmia.

Engulo o champanhe num gole rápido.

Adrien mantém a taça próxima aos lábios, mas não bebe.

Os olhos dele encontram os meus e, por um instante, sinto que brindamos a outra coisa: ao que nos destruiu.

Um dos advogados, com a elegância falsa de quem vive de bajular fortunas, comenta:

— É admirável ver o senhor Valenhart reconstruindo o que perdeu. — Sorri para mim. — A senhorita deve ter sido a melhor escolha.

Antes que eu possa responder, outro homem ri, abafado:

— Ainda me lembro das manchetes de dez anos atrás…

Helen intervém, suave:

— A juventude comete erros. O importante é o perdão.

Mas o pior vem depois, de uma voz feminina no final da mesa:

— Ou talvez o erro tenha sido perder Selene Rochefort. — A risada que segue é cruel. — Ela, sim, parecia a noiva perfeita.

O silêncio cai sobre a mesa como uma lâmina.

Minha mão treme, mas Adrien não se move.

Ele apenas entrelaça os dedos aos meus, apertando com força suficiente para me calar.

Os olhos dele, porém, estão fixos no nada, o tipo de vazio que dói.

Helen tosse, disfarçando o constrangimento.

— O passado ficou no passado, não é mesmo?

— Sempre fica. — respondo, antes que Adrien o faça. — Até alguém decidir exumá-lo.

O olhar de alguns convidados se volta para mim, surpreso com a ousadia.

Adrien se inclina um pouco, o tom baixo o bastante para que só eu ouça:

— Cuidado, Lívia. Você não precisa vencer todas as guerras hoje.

— E você não precisa fingir que não liga para tudo isso.

Os olhares se cruzam, e há algo feroz e íntimo neles.

O jantar segue, os talheres voltam a tilintar, mas o gosto do champanhe agora é amargo.

Selene não está ali, mas o nome dela paira sobre nós como uma ameaça.

Quando a sobremesa chega, Adrien solta minha mão e recosta na cadeira.

O gesto é frio, quase calculado, mas o espaço que ele deixa queima.

Helen encerra a noite com uma última frase:

— Que este seja o recomeço de tudo.

Mal sabe ela que o recomeço sempre vem disfarçado de repetição.

Quando os convidados se vão, fico na varanda, respirando o ar úmido da noite.

Adrien aparece logo depois, segurando duas taças de vinho.

— Achei que precisaria de uma. — diz, estendendo-me a bebida.

— Acha mesmo que vinho resolve tudo?

— Não. Mas ajuda a fingir que sim.

O silêncio se instala.

O vento levanta um fio do meu cabelo, e ele estende a mão para afastá-lo.

Não há câmeras agora. Nem público.

Mas o gesto ainda é perigoso.

— Não olhe pra mim assim. — peço, sem força.

— Assim como?

— Como se gostasse de mim.

Ele sorri de lado. 

— E se eu disser que ainda gosto?

Fecho os olhos, respirando o nome que nunca deixei de sentir.

— Então diria que está dez anos atrasado.

Ele se aproxima o bastante para que o perfume dele me envolva, e por um instante acho que ele vai me beijar. Mas, como sempre, ele para antes.

— O tempo não muda nada, Lívia. Só deixa o que é verdade mais difícil de negar.

E então ele vai embora, deixando o vinho, o calor e o caos.

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