Eu nunca gostei de funerais. Mas alguns são inevitáveis, especialmente quando o morto te persegue mesmo debaixo da terra.
O carro avança pela neblina e o portão de ferro da antiga propriedade surge como uma cicatriz no horizonte - alto, frio, marcado com o brasão dos Valenhart: uma rosa atravessada por uma adaga. O símbolo que me fez prometer nunca mais voltar. Promessa quebrada.
O vento sopra o cascalho do caminho como se sussurrasse segredos. Há dez anos deixei este lugar jurando que nunca mais pisaria nele. Dez anos tentando apagar o cheiro de madeira antiga e velas queimadas, o som dos passos que nunca eram só meus. E agora, estou aqui, vestida de preto, usando o mesmo perfume que usava quando ele dizia que eu cheirava a calmaria - e que hoje só me lembra destruição.
Os empregados se alinham quando desço do carro. Reconheço alguns rostos. Outros apenas fingem lembrança. Todos me observam como quem olha uma assombração.
— Senhorita Fontenay — diz o mordomo, com a voz que sempre pareceu saída de outro século. — O senhor Adrien já chegou.
Meu estômago se fecha.
Ele.
Meu ex-noivo.
O homem que destruiu tudo.
O motivo pelo qual jurei nunca mais voltar.
O salão principal está cheio. Lustres antigos, tapeçarias empoeiradas, cheiro de flores mortas. O caixão de carvalho repousa no centro, cercado por velas altas que tremulam com o vento que não deveria existir dentro da casa. Cada chama parece vacilar quando me aproximo.
Nos quadros, os ancestrais dos Valenhart me observam, implacáveis. Entre eles, o retrato do patriarca Henri Valenhart - agora dentro do caixão - me encara com a mesma severidade de sempre. O homem que controlava tudo. Que ditou regras, casamentos, vidas. Que acreditava que o amor era uma fraqueza. E que, ironicamente, levou o coração da família junto com o dele.
Sinto o peso dos olhares, o murmúrio dos parentes distantes. Tia Helen se aproxima, um véu fino sobre o rosto e um sorriso de condolência que mais parece uma lâmina.
— Que bom que veio, querida. O testamento será lido ainda hoje.
Claro. O dinheiro sempre fala mais alto que o luto.
— Não vim por ele — respondo. — Vim para encerrar o que ficou pendente.
Ela arqueia a sobrancelha, divertida.
— Pendente é uma palavra perigosa nesta casa.
Dou as costas antes que ela diga mais alguma coisa. Quero ir embora, mas há algo que me prende, talvez a curiosidade, talvez o peso da herança emocional que nunca consegui carregar. Quando passo diante do caixão, murmuro um adeus silencioso. O ar fica mais frio. Por um instante, juro ouvir o farfalhar de páginas sendo viradas, mas não há ninguém perto o suficiente para isso.
A casa respira. Eu sinto.
E então ele chega.
A porta se abre com o mesmo som grave que fazia quando éramos jovens e fugíamos para os jardins. O ar se move. As conversas cessam.
Adrien Valenhart atravessa o corredor com a mesma postura de quem aprendeu a dominar o mundo e ainda assim o despreza. Terno escuro, cabelo penteado com descuido calculado, barba leve, aquele olhar cinza que sempre parece saber demais.
Meu peito aperta de raiva, de lembrança, de tudo o que jurei enterrar.
Ele para diante do caixão, faz um leve aceno à tia Helen e então me vê.
Os olhos dele me atravessam, e o tempo faz o que sempre faz quando Adrien está perto: distorce tudo.
— Lívia — ele diz, a voz baixa, rouca, uma palavra que soa como um toque.
Meu nome nos lábios dele é um convite ao passado.
Eu deveria responder com indiferença. Em vez disso, meu corpo reage antes da mente. O coração dispara. A garganta seca. Dez anos se dissolvem em um segundo. Ele ainda é o homem que me fez acreditar no impossível, e o mesmo que destruiu causando a morte do meu pai.
— Sr. Valenhart — consigo dizer, formal.
Um canto do sorriso dele se ergue, breve, insolente.
— Ainda tão cerimoniosa.
— E você ainda tão... previsível.
Por um instante, o sarcasmo nos salva do colapso.
O advogado pigarreia, chamando a atenção de todos.
— Se me permitem, a leitura do testamento começará agora.
Adrien e eu ficamos lado a lado. Ironia do destino ou perversidade do velho Henri. A voz do advogado ecoa entre as paredes: disposições sobre empresas, fundações, imóveis. Até que ele chega ao ponto que muda tudo.
— Por desejo expresso do falecido, os herdeiros diretos, Sr. Adrien Valenhart e Srta. Lívia Fontenay, deverão coabitar em Valenhart Manor por um período mínimo de seis meses e apresentar provas de convivência harmônica.
Silêncio.
Sinto o sangue fugir do rosto.
— Caso contrário, a herança será redirecionada à Fundação Valenhart, sob supervisão de Selene Rochefort.
Selene.
O nome cai como veneno.
Claro que ela estava envolvida nisso.
Adrien cruza os braços, a mandíbula tensa.
— E se recusarmos?
— O testamento é claro, senhor. Ambos precisam cumprir as condições ou renunciam automaticamente à herança.
— Isso é absurdo — digo.
O advogado ergue os ombros, impotente.
— Era o desejo do patriarca.
Sinto o olhar de Adrien em mim, o peso do passado, a lembrança do que fomos.
— Parece que o destino gosta de ironia — ele murmura.
— Ou de punição — retruco.
O advogado entrega um envelope selado com cera negra.
— Este documento deve ser aberto apenas pelos herdeiros. Está marcado como “Carta I”.
O selo traz o mesmo símbolo: a rosa atravessada pela adaga.
O mesmo que vi centenas de vezes nos vitrais e tentei esquecer.
Guardo o envelope na bolsa. Não aqui, não agora.
O velório termina, as pessoas se dispersam, mas a sensação de estar sendo observada não passa. Quando olho para o retrato mais antigo da galeria, o de Lucien Valenhart e sua esposa, algo está diferente.
A pintura sempre mostrou o casal olhando um para o outro. Agora, os olhos parecem mirar diretamente em mim.
Fico ali, imóvel, até sentir o leve toque no ombro.
— Cuidado com o que você desperta, Lívia — Adrien diz, e a voz dele é meio aviso, meio promessa.
Me viro para responder, mas ele já está indo embora.
O vento sopra pelas frestas, uma das velas apaga, e o salão mergulha em penumbra.
O fogo do candelabro pisca uma última vez antes de apagar completamente, e o silêncio que se instala é tão denso que consigo ouvir o som do meu próprio coração.
Ele b**e forte, irregular, como se algo dentro de mim soubesse o que está prestes a acontecer.
Atrás de mim, o quadro estala.
Uma fina rachadura se abre bem sobre o peito de Lucien, no exato lugar onde o coração estaria.