E eu?
Quando decidi cursar Relações Públicas, ouvi o veredito gelado de Marta e Álvaro:
— Não faz sentido duas filhas competirem na mesma área. Você não nasceu para isso, Cecília.
Obrigaram-me a sair de RP.
Troquei por Publicidade e Propaganda, o curso mais próximo uma esmola com recibo. O recado ficou claro: não tente ocupar o lugar de Valentina.
Nunca houve espaço para mim. Nunca houve pertencimento.
Eles já deixaram claro que eu não estou no testamento. Tudo é de Valentina.
O sol deles.
A razão deles existirem.
Revirei os olhos só de pensar.
Mas, naquela noite, a ideia não me deixou em paz.
Lívia estava certa: e se eu me inscrevesse na vaga de estágio da Bellucci Holdings?
Se eu conseguisse… seria o começo de uma nova vida.
No Café Lótus, eu ganhava R$ 1.500 por mês. O estágio pagava o dobro — com benefícios. Eu poderia pagar minhas contas sem medo. Guardar. Montar um fundo para, quem sabe, sair daquele apartamento apertado e respirar sem pedir licença ao mundo.
Mais do que dinheiro, seria prova. De que eu era capaz. De que eu não era apenas a sombra da filha perfeita.
Quem sabe, até, fazer carreira ali.
Abri o notebook. A luz azul recortou o meu quarto pequeno no Morro das Lavandas. As minhas plantas jiboia, espada-de-são-jorge, costela-de-adão pareciam inclinar-se para mim, cúmplices silenciosas.
Os dedos tremeram sobre o teclado. Cada resposta do formulário era uma batalha contra a voz que ecoa desde a infância: você não é suficiente.
Nome: Cecília Clara Duarte.
Idade: 19.
Curso: Publicidade e Propaganda.
Experiência: atendimento ao cliente — Café Lótus (Centro Velho).
Projetos de extensão / sociais:
· Oficina de Leitura “Praça das Letras” — mediação de clube do livro mensal.
· Mutirão “Biblioteca Viva” — catalogação e doação de acervo para escola pública.
· Voluntária no “Sábado do Abraço” — ação com moradores de rua (entrega de kits de higiene).
Simples. Pequeno. Insignificante, talvez. Mas era o que eu tinha.
Fechei os olhos por um segundo. Vi Valentina sorrindo nos outdoors; Henrique ao lado; meus pais aplaudindo a filha dourada.
E eu, a sobra.
Apertei Enviar.
O coração disparou, como se quisesse pular da garganta.
Fiz uma prece breve mas sincera, dessas que a gente não admite para ninguém, para que aquele clique fosse o início de um caminho.
Os dias seguiram com o relógio arrastando corrente.
Eu virava o celular a cada meia hora, abrindo o e-mail como quem descobre resultado de exame. Caixa de entrada vazia. Spam vazio. Notificações inúteis. Nada da Bellucci.
No Lótus, tudo parecia igual. O barulho do moedor, o vapor da máquina, conversas sussurradas sobre contratos, casamentos, viagens. Dona Teresa me olhava por cima dos óculos:
— Calma, menina doce. Planta que cresce rápido demais quebra no primeiro vento.
Eu assentia, tentando acreditar que paciência também é uma forma de coragem.
Na terça-feira, o sino metálico tocou e eu travei por um por um segundo. mas não era ele. Um executivo qualquer, terno bom, mas presença nenhuma.
O Sr. Bellucci não apareceu mais.
Senti uma pontada de… tristeza? Ridículo, pensei. Como se aquele homem um deus grego com relógio de aço e voz grave , tivesse se tornado meu analgésico. A presença dele me fazia esquecer Henrique, Valentina, o grupo da família sobre a gravidez, os ultrassons com legendas cruéis.
Naquela noite, no caminho para casa, comprei pão fresco recém saido do forno na padaria da esquina. O cheiro ocupou todo o corredor do prédio, no meu apartamento ao canto distante de um rádio velho tocava minha musica favorita.
Deitei no sofá, o notebook equilibrado nas coxas. Atualizei a caixa de entrada outra vez. Nada.
Você não é suficiente.
Você não nasceu para isso.
As frases vieram como mosquitos, zumbindo perto do ouvido. Afastei-as com um balançar de cabeça e decidi fazer uma pequena faxina na minha cozinha, afinal cabeça vazia oficina do diabo.
Três dias depois, às 06h42, o celular vibrou.
Abri a notificação com o coração na boca.
Bellucci Holdings — Processo Seletivo de Estágio (Comunicação Interna / RP)
Prezada Cecília,
Recebemos sua inscrição. Seu perfil foi pré-selecionado para a etapa 2 (desafio assíncrono).
Enviaremos instruções até as 18h de hoje.
Atenciosamente,
Equipe de Talentos — Bellucci Holdings
Eu li três vezes, quatro. O cérebro demorou a entender.
Depois, ri. Um riso ainda tímido, mas real. As plantas no parapeito pareciam mais verdes, o quarto mais largo, a cidade menos hostil.
Mandei mensagem para Lívia:
— Fui pré-selecionada.
Ela respondeu com uma chuva de emojis, áudios e palavrões amorosos.
— Eu sabia, Ceci! Agora respira. Eu te ajudo com tudo. A gente vai te deixar impecável.
Fechei os olhos e, por um instante,
Havia só um começo.
A Torre Arcturus brilhava longe, invisível por trás dos prédios, mas eu podia sentir.
Como um farol.
Como se, pela primeira vez, a cidade inteira estivesse sussurrando: vem.