Mundo de ficçãoIniciar sessãoO sábado amanheceu nublado. As nuvens pareciam carregar o mesmo peso que Heitor sentia no peito. Estava em seu escritório desde cedo, sob o pretexto de revisar contratos — mas a verdade era que evitava olhar pela janela e ver Melissa no jardim com Heloisa.
Não era por desconfiança. Era medo. Desde que a esposa morrera, Heitor vivera trancado em si mesmo. Trancado na dor. Na culpa. E num segredo que nem mesmo os mais próximos jamais souberam. Sentado na poltrona de couro escuro, os olhos fixos em um ponto qualquer da parede, permitiu-se relaxar por um breve momento. O silêncio da casa o embalou, e antes que percebesse, os olhos se fecharam. E então, o passado voltou. Era noite. Estavam voltando de uma festa da empresa. Laura, sua esposa, rindo no banco do passageiro, o celular em mãos, digitando apressadamente. Ele dirigia, tenso. Já desconfiava. Havia algo errado. Horas demais fora de casa, desculpas demais. E naquela noite, ele confirmara. Mensagens no celular de Laura. Com Pedro. Seu sócio. Seu amigo de infância. Ela o traía. Ele não a confrontou de imediato. Manteve o silêncio, os olhos fixos na estrada. Mas as mãos tremiam. O peito ardia. A tempestade desabava lá fora, e por dentro. — Heitor, presta atenção! — gritou Laura de repente. Mas já era tarde. Os faróis invadiram a pista contrária. A colisão foi inevitável. Tudo aconteceu em segundos. Gritos. Vidro. Sangue. O carro virou. O mundo parou. Pedro também estava naquela estrada, voltando sozinho de outra direção. Morreu na hora. Laura ainda respirava quando os bombeiros chegaram, mas faleceu a caminho do hospital. Heitor sobreviveu. Com o rosto intacto, mas com a alma em pedaços. O escândalo foi abafado por advogados e dinheiro. Ninguém jamais soube que os dois mortos estavam ligados por mais do que amizade. Quando acordou no hospital, tudo o que conseguiu pensar foi: minha filha está sozinha agora... e eu também. Mas, diante de Heloisa, ele falhava. Os olhos verdes da menina — idênticos aos da mãe — o torturavam. Lembravam-no de tudo o que ele queria esquecer. Por isso se afastou. Por isso se calou. Por isso vestiu a máscara do homem frio, do empresário impenetrável. No fundo, era apenas um homem tentando sobreviver à própria ruína. Um leve ruído do lado de fora o despertou. Respirou fundo, limpando o suor frio da testa. O relógio marcava 8h12. Pela janela, viu Melissa sentada na grama com Heloisa no colo. Estavam pintando alguma coisa com os dedos, e a menina ria. Não sorria — ria. Como há muito ele não via. O coração de Heitor deu um salto, incômodo. A imagem mexeu com algo que ele lutava para manter enterrado. Melissa não sabia, mas ela estava tocando um terreno delicado demais. Ela era gentil. Forte. Verdadeira. E pior: não parecia ter medo dos fantasmas que moravam naquela casa. Mas ele tinha. Tinha medo de abrir a porta e, de novo, ser destruído por confiar. Levantou-se, ajustou a camisa e desceu com passos firmes. O tempo de observar estava acabando. Era hora de testar não só a babá, mas os próprios limites que ele se impôs. Heloisa o viu se aproximar e correu até ele com tinta nas mãos. — Papai, olha o que eu e a Mel fizemos! Mel. Um apelido. Um vínculo. Um avanço. Melissa o encarou com um leve sorriso, esperando um veredito que ainda não viria naquele dia. Mas naquele instante, Heitor soube: a mulher diante dele tinha o poder de abrir portas que ele manteve trancadas por muito tempo. E isso o apavorava mais do que qualquer lembrança.






