Mundo de ficçãoIniciar sessãoA casa tinha um ritmo. Por mais que mudassem os moradores, por mais que o tempo fizesse seu trabalho silencioso, ela ainda ouvia os ecos da rotina. Mas naquela semana... algo se alterou.
Isabel não era mulher de fantasias. Aprendera cedo a distinguir ilusões de fatos. E os fatos estavam ali, espalhados em detalhes que só ela parecia notar. Começou pela geladeira. Nunca houve nada ali além do que era necessário. Um ímã discreto para o telefone da farmácia, talvez um lembrete de entrega. Mas agora havia desenhos. Rabiscos coloridos, folhas tortas coladas com fita adesiva. Um sol com olhos sorridentes, uma mulher de cabelos cacheados com um coração no peito, e a letra trêmula de Heloisa assinando o canto. Isabel passou o pano em volta, com cuidado para não deslocar nada. Tocou um dos papéis como quem toca um segredo. Depois foi o café. O senhor Heitor sempre tomava pela manhã, entre sete e sete e quinze. Era o ritual. Entrava na cozinha ainda de gravata frouxa, pegava a xícara no pires e caminhava até a varanda, onde lia no tablet as notícias do dia. Mas agora o café esfriava. Isabel o observava, de longe, parado no corredor, com a xícara intocada na mão, os olhos fixos em Heloisa. A menina ria com Melissa na sala, os dois montando alguma engenhoca de papelão. Heitor não dizia nada — apenas olhava. Um olhar cheio de algo que Isabel reconheceu de imediato: espanto. E ternura. Ela não se intrometia. Não era de perguntas nem de conselhos. Mas viu em Melissa um modo diferente de estar. Aquela moça não forçava presença. Não se impunha. Era como uma brisa que entrava pela janela aberta: simples, constante e inevitável. Trazia para Heloisa um tipo de atenção que Isabel só vira, talvez, na antiga senhora Clara. E para Heitor... trazia silêncio. Mas um silêncio bom, feito de paz. De descanso. Isabel não sorria com facilidade. Era o tipo de mulher que esperava mais dos gestos do que das palavras. Mas ali, entre a xícara esquecida e os desenhos na geladeira, ela sentiu uma mudança. Pequena. Quase imperceptível. Mas real. E era o suficiente, por ora. Isabel acordava todos os dias às 5h. Antes mesmo do alarme tocar, seu corpo já sabia o que fazer. Cada gesto seu era parte de um ritual que ela praticava havia décadas: colocar o café no fogo, checar o estado da casa, revisar a lista de compras. Tudo com a precisão de quem entende que cuidar não é um ato de falar, mas de fazer. O coque firme no alto da cabeça era como uma armadura. Havia dias em que pensava em deixá-lo frouxo, em se permitir o cansaço. Mas então se olhava no espelho e via o reflexo de tudo que vivera ali — da menina que entrou aos vinte para ajudar a cuidar de uma casa grande demais e cheia de vozes. Vozes que hoje ecoavam menos. Viu Heitor crescer. Lembrava dele correndo pela varanda, com a camisa da escola desabotoada e um dente faltando no sorriso. Lembrava também da mãe, a senhora Clara, que tinha o dom de transformar silêncio em abraço e uma voz firme que acalmava até tempestade. Mas Clara se foi cedo demais. E quando a casa ficou grande demais para o luto, Isabel aprendeu a recolher seus afetos. Guardou a doçura que tinha no jeito de dobrar lençol, no cheiro do pão que assava de manhã. Deixou que o silêncio tomasse conta de sua presença. Descobriu que, às vezes, é mais fácil ser invisível do que se partir por dentro. O som estridente da campainha quebrou a tranquilidade da casa e os pensamentos de Isabel. Isabel, que preparava o chá de Heloisa na cozinha, limpou as mãos no pano de prato e caminhou até a porta principal. Não precisava correr — já sabia quem era. Reconhecia aquele toque impaciente, repetido duas vezes, com exatidão cirúrgica. Helena. Ao abrir a porta, encontrou a jovem parada na soleira como quem entra num lugar que lhe pertence por direito. Estava vestida com roupas de marca, óculos escuros exagerados. Ao lado dela, uma mulher que Isabel nunca vira antes — um tipo elegante, excessivo, com sorriso treinado e um perfume doce demais que chegou antes dela. — Finalmente — disse Helena, passando pela porta sem um olhar, sem um "bom dia". Isabel apenas assentiu com a cabeça, mantendo o mesmo coque alinhado, o rosto impassível. Aquilo não a feria mais. Mas lembrava. Lembrava da menina Helena de tranças que ela mesma penteava. Dos ataques de birra quando o bolo não era do sabor favorito. Das noites febris em que Isabel passava sentada ao lado da cama enquanto a mãe de Helena viajava. Criara os dois. E era como se nada disso importasse agora. — Onde está o meu irmão? — perguntou Helena, tirando os óculos. — Espero que não esteja trancado naquele escritório imundo. Trouxe alguém para sacudir aquele humor de cemitério. A outra mulher deu uma risada aguda, sem graça. Isabel não respondeu. Apenas se virou e anunciou, com voz firme: — Vou informá-lo da presença da senhora. Enquanto subia os degraus, a governanta lançou um olhar de relance para a convidada. Observadora por natureza, captava em segundos o que os outros levavam horas para notar. Aquela mulher... havia algo de encenado nela. Cada gesto calculado, cada sorriso moldado. Seus olhos varriam a casa como quem avalia o preço de tudo, e Isabel conhecia aquele tipo — não pela roupa, mas pelo olhar. Era bonita. Perigosamente bonita. Mas vazia. Como um vaso caro e oco demais. Do alto da escada, Isabel parou por um instante. Da sala, vinha o som das risadas de Heloisa e Melissa, misturadas à voz de um desenho na TV. E da entrada, o cheiro enjoativo do perfume e a voz de Helena, já reclamando da decoração da casa. O equilíbrio silencioso das últimas semanas estava prestes a ser perturbado. E Isabel, com toda a sua reserva, sentiu no peito um pressentimento. Como quem sabe, antes de todos, que algo importante está prestes a acontecer.






