A pintura e a pele

O apartamento de Cael era surpreendentemente silencioso, mas não por falta de vida — era como uma respiração contida, como o segundo antes do primeiro toque. A porta se fechou atrás de Isadora, suave, sem estardalhaço, como se até a madeira entendesse que aquele momento não podia ser interrompido.

Ela deu alguns passos para dentro, os olhos vagando por tudo: os pincéis manchados de cor, as telas encostadas nas paredes, o cavalete no centro da sala. A luz era quente, dourada, como se o sol tivesse decidido morar ali. Mas havia algo mais. Um cheiro de tinta misturado com jasmim e alguma coisa que ela não conseguia nomear. Algo que a fazia sentir… presente.

Cael não falou. Nem ela.

Por um instante, eles apenas ficaram ali — ela, de pé no meio da sala, ele encostado na parede, observando. Mas não era uma observação invasiva. Era uma contemplação respeitosa. Como se ele estivesse esperando que ela respirasse aquele lugar e sentisse que podia ficar.

Isadora passou os dedos levemente por uma tela virada. Viu a silhueta de uma mulher inacabada, quase feita de luz, com traços soltos e uma expressão de cansaço e beleza ao mesmo tempo. Ela não precisou perguntar. Sabia que era ela. Ele havia pintado o que viu naquela manhã.

— Você me pintou — murmurou, mais para si do que para ele.

— Eu vi você — ele respondeu, com a voz baixa, firme, carregada de algo que ela não conseguia decifrar. — E quando a gente realmente vê… é impossível esquecer.

Ela sentiu um arrepio. Não de medo, mas de reconhecimento. Aquelas palavras não vinham apenas dos lábios dele — vinham de um lugar que ela ainda não entendia, mas que a tocava fundo, quase como um chamado.

— Você é artista? — ela perguntou, mais para puxar o ar do que para puxar assunto.

— Entre outras coisas.

Ela sorriu, ainda sem saber se deveria se permitir relaxar. Ainda não confiava naquele momento — era bom demais. E coisas boas demais, ela aprendera, sempre vinham com um preço.

— Por que eu? — ela sussurrou. — Há tantas pessoas lá fora. Por que olhar para mim?

Cael a olhou como se a pergunta doesse.

— Porque você não finge. Porque carrega sua dor como quem carrega o próprio nome. Porque há beleza em quem já caiu, mas continua de pé, mesmo que com os joelhos trêmulos.

Isadora piscou devagar, e os olhos se encheram. Não era drama. Era verdade. Era difícil ouvir isso — difícil demais, depois de tanto tempo sendo invisível.

Ela não sabia o que fazer com tanto cuidado.

— Eu não sou inteira, Cael. Estou cheia de pedaços soltos.

— Eu sei. Mas até cacos refletem luz.

E ali, naquele silêncio preenchido de significado, Isadora sentiu que algo estava sendo costurado dentro dela. Um fio invisível, talvez, ligando partes que ela nem sabia que ainda estavam ali.

— Eu não devia estar aqui — disse ela, com a voz trêmula. — Eu não vim preparada pra isso.

— Pra ser vista?

Ela assentiu, e ele se aproximou. Um passo. Dois.

— Então não se mostra — disse ele. — Só sente. Fica. Respira. Você não precisa ser inteira pra ser linda.

O tempo pareceu desacelerar. Havia algo no modo como ele falava, no modo como ele olhava, que quebrava todas as defesas que ela tinha passado anos erguendo. Ela quis correr. Mas também quis ficar. Era como estar à beira de um penhasco e ao mesmo tempo nas asas de algo maior.

Então, num gesto tão simples quanto poderoso, Cael pegou um pincel e o mergulhou numa tinta suave. Sem tocar nela, sem sequer encostar a mão, ele estendeu o cabo.

— Deixa eu te mostrar como você é. Mas só se você quiser.

Ela olhou para o pincel. Para ele. Para si mesma.

E, pela primeira vez em muito tempo, disse “sim”.

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