A ponta do pincel escorregou lentamente pelo papel. Cael não olhava para o que pintava. Olhava para ela.
Isadora estava sentada no sofá, envolta na própria hesitação. Havia uma inquietação no ar — algo mais denso que desejo, mais sutil que medo. Os olhos dele não eram apenas bonitos. Eram intensos demais para um humano comum. Como se guardassem séculos. Como se ele soubesse demais sobre tudo. Ela sentia que havia algo ali… que não fazia sentido. O modo como ele se movia, a delicadeza absurda com que tocava os objetos, a forma como sua presença preenchia o espaço como uma brisa quente que vinha de dentro dela. Era inexplicável. — Por que você me olha assim? — perguntou, num sussurro quase envergonhado. — Porque seu corpo tem música, e ninguém te ensinou a ouvi-la. Ela desviou o olhar, os dedos enroscando-se no próprio casaco. Aquilo não era um elogio qualquer. Era uma confissão. Um chamado. Como se ele a chamasse para habitar o próprio corpo com ternura — não por ele, mas por ela mesma. — Você não é como os outros — ela arriscou. Ele hesitou. Por um segundo, seus olhos pareceram escurecer como nuvens prestes a chover. — Não — respondeu, baixinho. — Não sou. Ela engoliu seco. — Quem é você, Cael? Ele se aproximou, mas sem pressa. Parou à frente dela, o pincel ainda na mão, a respiração leve, o maxilar tenso. — Um erro — disse, quase sem som. — Ou talvez… só um desejo. Ela ergueu os olhos, e ele parecia lutar contra algo dentro de si. — Eu não devia sentir — continuou. — Nem pensar. Muito menos desejar. Mas você… me tira da linha. Me faz querer pele. Me faz esquecer o céu. Isadora sentiu o estômago revirar. Aquilo não era só poesia. Era real. E estranho. E assustadoramente bonito. — Céu? — Não posso contar. Não do jeito que você entenderia agora. Ele passou os dedos pelo próprio pescoço, como se quisesse arrancar a pele de onde ela estava. Como se estivesse preso num corpo que não o pertencia. Havia uma dor contida ali, quase física. Uma fome antiga. — Você é… um anjo? O silêncio confirmou. Ele não assentiu, nem negou. Só ficou ali, parado, o olhar ferido e exposto, como quem foi arrancado de casa por vontade própria. Ela se levantou lentamente, o coração aos saltos. — E você… sente desejo? Cael fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, ela viu. Viu um fogo escondido — calmo, mas profundo. Um fogo que pedia, que implorava. — Eu sinto, Isadora. Por você. Aquelas palavras eram uma faísca na noite dela. Ela se aproximou, sem saber o que fazia, apenas guiada por algo primitivo e delicado. Seus dedos tocaram o peito dele por cima da camisa. E ela sentiu. Não apenas calor — sentiu vibração, como se ali dentro houvesse algo vivo demais. Forte demais. Intenso demais para aquele mundo. — Eu também — confessou. O rosto dele estava tão perto que ela podia sentir o hálito leve. Cael fechou os olhos, como se o momento o esmagasse. Ele queria, mas não podia. Era um campo entre dois mundos: desejo e missão. Carne e luz. — Se eu te tocar, não volto mais — murmurou, a voz embargada. — E se eu quiser que você fique? Ele tremeu. Isadora não o beijou. Nem ele a ela. Mas a energia entre os dois era um beijo suspenso no ar, esperando o segundo certo. O mundo parecia ter desaparecido, e tudo o que restava era o som dos corações batendo descompassados, o cheiro de tinta e jasmim, o espaço entre o querer e o ter. Cael se afastou um passo. Trêmulo. Lutando. — Você precisa entender — disse, quase sem conseguir falar. — Anjos… não tocam o que desejam. Nós protegemos. Nós observamos. Mas com você… eu estou à beira de tudo. Isadora respirou fundo. Pela primeira vez, não se sentia quebrada. Se sentia… desejada. Escolhida. Por um ser que nem devia sentir. Ela tocou o rosto dele com a ponta dos dedos. — Então toca — sussurrou. — Só hoje. Antes que o céu perceba. Cael fechou os olhos, e por um instante, parecia que tudo ia se desfazer. Mas ele a tocou. Com uma reverência tão intensa que parecia pecado. E talvez fosse. Mas, para eles, era redenção.