Narrado por Zalea Baranov
O gelo ainda me tocava a pele como um sussurro cruel, lembrando que ali não havia mais abrigo. Meus joelhos ardiam, mas o que realmente queimava era o olhar dele — parado, imóvel, como uma escultura esculpida em silêncio. Ele não pertencia àquele lugar. Não ao vazio branco da pista. Não à música melancólica que ainda flutuava no ar como uma prece esquecida. Ele pertencia à noite. Às sombras. Às páginas rasgadas daquilo que meu pai chama de história. O ar estava espesso. Cada respiração parecia carregada de algo antigo e indizível. A luz azulada cortava seu rosto de maneira desigual. Havia um traço de beleza ali, sim, mas era uma beleza gasta, deformada por tempestades. E os olhos… aqueles olhos eram dois abismos congelados, sem fim. Espelhos partidos. Me levantei devagar, cada movimento acompanhado pela pontada de um instinto que gritava: corra. Mas eu fiquei. Fiquei, porque fugir nunca me salvou de nada. — Espectador? — minha voz ecoou pelo vazio, mais firme do que o tremor em meu estômago permitia. — O clube está fechado. Como entrou? Ele sorriu. Não um sorriso de prazer, mas um sorriso de quem já enterrou muitos corpos e nunca foi encontrado. — A porta estava aberta. Mentira. E ele sabia que eu sabia. Cruzei os braços, como quem tenta se proteger do inverno que vem de dentro. — E o que, exatamente, você está assistindo? Ele demorou. Parecia saborear a pergunta, mastigá-la por dentro. Então respondeu com a naturalidade de uma sentença de morte: — Você. Uma única palavra. Um toque de veneno no ouvido. Me senti nua. Não fisicamente — mas em espírito. Como se ele tivesse visto minhas falhas antes mesmo de eu as reconhecer. A música seguia, como uma marcha fúnebre mal disfarçada. As notas soavam quase irônicas. Como se zombassem de mim por ter acreditado que ali, naquele gelo, eu estava sozinha. — Já assistiu o suficiente, murmurei. — Pode ir. Mas ele não se moveu. Não precisava. Sua presença era como uma sombra que não depende de luz para existir. Ele me olhava como se houvesse poesia nas minhas rachaduras. Como se cada falha minha fosse uma trilha a ser seguida. Senti que, de alguma forma, ele reconhecia em mim o que eu escondia até de mim mesma. A dor antiga. O nó no estômago. A sensação de ser estranha em todos os lugares. E mesmo sem um nome, sem um passado compartilhado, havia algo em nós que parecia… espelhado. Ele caminhou dois passos à frente, e o som do solado contra o concreto ecoou como um presságio. Minhas pernas ficaram tensas. Não de medo — mas de algo mais profundo. Algo primal. Como se minha alma recordasse um perigo antigo, anterior ao meu nascimento. Havia crueldade nele. Eu sentia isso. Mas também havia beleza. A beleza de algo quebrado que se recusa a morrer. Foi então que o mundo do lado de fora rompeu o véu. Tiros. Primeiro distantes, como trovões do outro lado da cidade. Depois, mais perto. Gritos. Passos. Ruído de fim do mundo. Meus ossos gelaram. — Merda… E ele? Ele parecia não pertencer a esse tempo. Seu rosto se manteve sereno. Mas seus olhos… eles sabiam. — Aquilo tem a ver com você? — perguntei, já conhecendo a resposta. A tensão em sua mandíbula respondeu por ele. Voltei para o banco com pressa, puxei os cadarços dos patins como quem se despede de um sonho antigo. Minhas mãos tremiam. O mundo real estava batendo à porta — e ele não era gentil. — Você precisa sair daqui — falei, já indo para a porta lateral. — Agora. Mas sua mão me alcançou primeiro. Seu toque era quente. Quente como febre. Quente como sangue recém-derramado. E meu corpo congelou. — Não é tão simples assim, printsessa. Aquela palavra. Em russo. Familiar. Íntima. Princesa. Mas ele não disse com deboche. Disse como quem já me conhecia. Como quem tinha caminhado por dentro do meu nome. Meu coração vacilou. — Por que me chamou assim? — Pareceu apropriado. Mentiroso. Mas havia algo no timbre dele… um tipo de verdade oculta. Um eco de outra vida. Tentei puxar o braço, mas ele não me soltou. Seus dedos eram âncoras. Seu olhar, vertigem. — Não posso te deixar sair assim — ele disse. — Não agora. — E quem é você pra decidir isso? — Alguém que sabe o que está lá fora. As palavras caíram como lâminas de gelo. Eu soube então que ele estava fugindo. Mas não apenas de algo. De alguém. E esse alguém era parte do meu mundo também. O mundo dos Baranov. O mundo onde o sangue tem nome, e as promessas são feitas com pólvora. — Você me colocou em risco só por estar aqui. — Talvez — ele respondeu com a frieza de quem já perdeu tudo — você já estivesse em risco antes de eu chegar. As palavras dele foram um espelho. E nele, vi a verdade: eu nunca estive segura. Nem aqui. Nem em casa. Nem em lugar algum. — Então o que vai fazer agora? Vai me usar como moeda? Como isca? Ele sorriu. Um riso cansado, quase triste. — Se eu quisesse te usar… você já não estaria aqui, falando comigo. E então o silêncio voltou. Denso. Cortante. — O que você quer de mim? Ele me encarou como quem olha para um fogo antigo — aquele que já queimou uma aldeia inteira e continua aceso. — Ainda estou tentando entender. E eu, contra toda razão, desejei que ele não fosse embora. Desejei que ele voltasse. Mesmo sabendo que, se ele voltasse… algo em mim morreria. Ou pior — viveria. De um jeito que eu não saberia mais apagar.